O que está por trás das edições do D&D e será que a quinta edição é a Definitiva? PT. 2


No texto passado trouxemos um debate sobre problemas que surgem ao se tentar criar um sistema único e que pudesse abraçar um sistema de miniaturas e o teatro da mente.

Uma das soluções para generalizar e otimizar o sistema passa pela precisão restrita.

Precisão restrita (Bounded Accuracy)


O termo surgiu a partir de outras edições do D&D onde personagens de níveis muito altos ou altamente especializados acumulavam muitos bônus e o nível de dificuldade da jogada de dados (ou dos testes de habilidade) precisava acompanhar esta evolução e alcançando valores muito altos. Dessa forma, haviam tarefas ou testes que eram impossíveis para alguns personagens e outros testes que eram certos para outros.

A Insanidade da precisão no AD&D – O THAC0

Em AD&D o sistema de erros/acertos passava muito diretamente pelos Atributos. E por tabelas extremamente complexas. Era possível ter algumas coisas só explicáveis pelo autor, como uma Classe de Armadura decrescente e um sistema de acerto que também decrescia por meio de uma tabela de acerto de classe de armadura zero (THAC0 em inglês).

Classe Tabela de THAC0 Conjunta
Níveis ou Dados de Vida (DV)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
Sacerdote 20 20 20 18 18 18 16 16 16 14 14 14 12 12 12 10 10 10 8 8
Ladino 20 20 19 19 18 18 17 17 16 16 15 15 14 14 13 13 12 12 11 11
Guerreiro 20 19 18 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2  1
Mago 20 20 20 19 19 19 18 18 18 17 17 17 16 16 16 15 15 15 14 14
Criatura 19 18 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0

Confesso que esta tabela não deixa saudades (para os viciados no jogo, a proporção de diminuição de THAC0 era S -3:2; L -1:2; G -1:1; M: -1:3 e criaturas -1:1). Some-se a isso que se o atributo Força (não se usavam como regra outros atributos para acerto) te desse um bônus +4 para acertar, você precisa subtrair isso do seu THACO. Os bônus das armas mágicas e especializaçãoes com armas também entravam nessa lógica.

Exemplo: Gatrok é um guerreiro de nível 10 e tem um bônus de +3 para acertar. O THAC0 dele é 8. Ao combater um vampiro de CA zero, ele precisa tirar 8 ou mais no d20. Com sua arma +1 e sua especialização, que dá +1, ele precisa tirar 6 ou mais para acertar o vampiro!

Isso fora que a CA diminuía, então a melhor CA era -10 (o limite). E aí, você somava à dificuldade. Então menos era mais no AD&D (dica: troque o sinal).

Exemplo: o vampiro, ao perceber que Gatrok está tendo facilidade para acertar, pega um escudo mágico que lhe dá +4 na CA, que vai para -4 e o guerreiro só o acertará com 10 ou mais no dado.

Como já disse, este sistema não deixa saudades, por ser complexo. Ele fazia com que jogadores iniciantes e desatentos a se frustrar com o jogo. Mas esse sistema foi feito exatamente para dar ao guerreiro (que é a maioria de todos os seres humanos, na visão do jogo) a chance de participar efetivamente ao lado do Mago, que não precisava do THAC0, mas quanto precisasse, só faria feio diante dos companheiros.

O Resultado disso foi que monstros imunes a magia, ou com altas resistências (medidas com PORCENTAGEM!) tinham CAs altas, pois eles sempre seriam confrontados não por magos, mas por guerreiros. Dentro dessa lógica, criaturas com baixas CAs e sem imunidades, viravam farelo em instantes e o mago tinha como primeira função limpar o grid para os outro.

Só que essa lógica escondia um problema: Dependendo do nível da criatura, do nível do aventureiro e dos itens por ele usados, havia situações de acertos quase impossíveis. Em contrapartida haviam situações em que a possibilidade de acerto era de 100%

Por causa disso temos a regra de oure e a tradição de que 1 é sempre erro e 20 é sempre acerto, para dar ao menos uma margem de 5% de insucessos e de 5% de sucessos. A falha crítica com 1/1 e a morte instantânea com 20/20, traziam a ínfima chance de um Plebeu matar um dragão com 0,25% de chance. Do contrário, a morte era rápida e dolorosa.

Sobre a questão de poder, ainda falarei do Guerreiro Linear e do Mago Quadrático, outro dilema do AD&D a ser resolvido em outra postagem.

3.0 e a solução para o THAC0 e a criação de outro Monstro: O Acumulador de Bônus

A 3ª edição veio após a compra da TSR pela WotC. Ela buscava simplificar a jogabilidade e o THAC0 era um dos problemas a eliminar.

E a solução veio de forma muito simples: Você jogava os dados, somava os bônus (e/ou diminuía as penalidades ) e comparava à CA; se o número fosse igual ou maior que a CA, o golpe acertava.

Uma ressalva é importante: o turno que era de 1 minuto, passou a ser de apenas 6 segundos. Com isso, várias modalidades de ação foram criadas, para deixar o turno mais realista.

A mesma mecânica veio para as Perícias (skills). Ou seja, bastava você jogar o dado, somar os bônus (e/ou diminuía as penalidades ) e comparava à Classe de Dificuldade (CD). Se o valor final fosse maior ou igual, a perícia era bem sucedida.

Para quem jogou o AD&D, esse sistema era um verdadeiro alívio! A coisa ficou mais simples, sem precisar trocar sinais. Mas engana-se que o sistema era simples. Toda classe tinha suas tabelas e as estatísticas de Jogadas de Proteção distribuídas em  proteção eram boas e ruins; havia também as Perícias que podiam ser de Classe e de Outra Classe, isso além do Bônus de Ataques Base (BAB) que eram bons, regulares e ruins. Ela ficou mais ou menos assim:
[ScrollableTable]

Tabela de Bônus
Níveis ou Dados de Vida (DV)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
BAB(bom) +1 +2 +3 +4 +5 +6/+1 +7/+2 +8/+3 +9/+4 +10/+5 +11/+6/+1 +12/+7/+2 +13/+8/+3 +14/+9/+4 +15/+10/+5 +16/+11/+6/+1 +17/+12/+7/+2 +18/+13/+8/+3 +19/+14/+9/+4 +20/+15/+10/+5
BAB (regular) +0 +1 +2 +3 +3 +4 +5 +6/+1 +6/+1 +7/+2 +8/+3 +9/+4 +9/+4 +10/+5 +11/+6/+1 +12/+7/+2 +12/+7/+2 +13/+8/+3 +14/+9/+4 +15/+10/+5
BAB (ruim) +0 +1 +1 +2 +2 +3 +3 +4 +4 +5 +5 +6/+1 +6/+1 +7/+2 +7/+2 +8/+3 +8/+3 +9/+4 +9/+4 +10/+5
 Jogada de Proteção (B) +2 +3 +3 +4 +4 +5 +5 +6 +6 +7 +7 +8 +8 +9 +9 +10 +10 +11 +11 +12
Jogada de Proteção (R) +0 +0 +1 +1 +1 +2 +2 +2 +3 +3 +3 +4 +4 +4 +5 +5 +5 +6 +6 +6
Perícia de Classe +4 +5 +6 +7 +8 +9 +10 +11 +12 +13 +14 +15 +16 +17 +18 +19 +20 +21 +22 +23
Perícia de Outra Classe +2 +2-1/2 +3 +3-1/2 +4 +4-1/2 +5 +5-1/2 +6 +6-1/2 +7 +7-1/2 +8 +8-1/2 +9 +9-1/2 +10 +10-1/2 +11 +11-1/2

[/ScrollableTable]
É preciso prestar atenção na sistemática aqui: o AD&D tinha uma tabela regressiva de chance de acerto para um número fixo (zero); a 3ª edição tinha uma tabela progressiva de chance de acerto sem um número fixado.

O sistema por ser progressivo, permitia o acúmulo de bônus, vindos de talentos, perícias, atributos, especialidades, classes de prestígio e itens que podiam acumular os bônus direta ou indiretamente. Isso tendo como base a tabela acima que chegava a bônus tão altos quanto o dado de base, o d20. Isso sem contar as frações e os ataques com valores diferentes (a cada ataque ele era mais difícil de acertar).

Em resumo: A 3ª edição criou uma precisão irrestrita!

Como assim? Ora, para o jogo ficar emocionante e trazer desafios, era preciso que o nível de dificuldade das tarefas subissem de acordo. Então, abrir uma fechadura não poderia ter a CD 15 para um ladino expert, pois no 4º nível ele nem precisaria rolar mais os dados.

Ou seja, aquele efeito esteira dos monstros (treadmill effect) veio parar no núcleo de todas as jogadas de dados! E mais, o sistema permitia se criar superespecialistas. Nunca vou me esquecer de um mago Olin Gisir que tinha +37 de conhecimento em arcanismo no 17º nível. Detalhe que o sistema colocava como dificuldades impossíveis a CD 40.

Em resumo a ideia simplificada inicial se tornou um desafio para mestres e criava situações impossíveis de serem superadas sem o especialista. Ou seja, se o grupo se dividisse ou um dos personagens morressem, aqueles testes que foram destinados a criar um obstáculo para aquele personagem, podiam se tornar intransponíveis para os outros membros do grupo.

A Cabeça já está doendo? Pois é! Era mesmo muita dor de cabeça lidar com números tão altos e um jogo de dificuldade tão aberta.

Jogadores queriam ter a chance de ao menos poder tentar. Coisa que a 3ª edição tirou dos jogadores. Foi aí que surgiu a necessidade de aprimorar o sistema e surgiu a 4ª edição.

Aquela edição que não pode ser dita!

A quarta edição me parece mais e mais amaldiçoada por conta do cataclisma em lendas e histórias dos cenários, do que do sistema em si.

Ela alterou toda a forma em como se constroem os personagens, mas ela nem tentou impôr limites na precisão irrestrita criada pela 3ª edição.

Ela usa a mesma mecânica: Você jogava os dados, somava os bônus (e/ou diminuía as penalidades ) e comparava à CA; se o número fosse igual ou maior que a CA, o golpe acertava. O mesmo para perícias.

A diferença é que a Base de todos os testes, ataques e jogadas tinham como base um bônus equivalente à metade do nível do personagem.

O sistema também inovou com a divisão entre os Ataques Básicos e os Poderes de Ataque que tinham defesas específicas, equilibrando o jogo e valorizando outros atributos, além da Força:

TIPO ATAQUE DEFESA
Básico corpo a corpo Força + Bônus vs. CA
Básico à distância Destreza + Bônus vs. CA
Poder de Ataque Força + Bônus vs. CA
Poder de Ataque Carisma + Bônus vs. Vontade
Poder de Ataque Constituição + Bônus vs. Fortitude
Poder de Ataque Inteligência +4 + Bônus vs. Reflexos
Poder de Ataque Destreza + Bônus vs. CA, um ataque por alvo

Confesso para você, leitor, que eu estranhei muito imaginar um ataque com carisma. Comecei a jogar no AD&D e para mim ataque era Força ou Destreza. Aliás, na 5ª Edição (já chego lá…) também.

Apesar de trazer estranheza no começo. vejo que o sistema valoriza outros atributos que eram praticamente inúteis em outras edições (Sim, estou falando do Carisma), ainda mais se você tem um jogo porradeira, em que tudo terminava em combate e zero de interação social.

Para entender isso, jogue com um paladino de AD&D e veja todos crescerem enquanto sua importância no combate decrescia, apesar de ter um carisma altíssimo (e que nunca era usado).

Mas voltando à questão principal, o jogo não impõe limite de bônus, nem de dificuldade.

Apesar de estabelecer papéis de combate interessantes, o sistema me parece ter mantido um sistema de acúmulo de bônus que permitia a criação de super especialistas e o problema de ter que arrastar a dificuldade de tudo ao redor, para o jogo se tornar emocionante e desafiador. Aliás, neste quesito, vejo com bons olhos a ideia de mexer no design dos monstros (em post futuro).

Apesar dos pesares, o sistema sofre enorme resistência dos jogadores e a WotC usou a experiência acumulada da 4ª edição mais como negativa, do que positiva. Há também algo a se pesquisar sobre o sucesso do Pathfinder na decisão de sair da 3ª  e migrar para a 4ª edição, de forma abrupta. Mas essa relação de mercado (e não de sistema) é algo a ser melhor analisada. Que há algumas coincidências entre lançamentos, isso há. Além dos termos de OGL terem mudados de edição para edição.

A 5ª Edição e o novo modelo para o Mercado

Por conta das críticas à 4ª edição a WotC voltou à prancheta para redesenhar o jogo. Mas desta vez, eles não iriam buscar impactar o público, eles queriam se aliar ao público na construção do jogo.

A versão de testes foi chamada D&D Next e começou em 2012 (enquanto ainda havia a 4ª edição) e durou até o lançamento da 5ª Edição em 2014.

Após muito pensar e muitos feedbacks da comunidade, notou-se que a falta do THAC0 gerava uma onda de números estratosféricos. Sem um número médio, como então fazer um sistema coerente?

A resposta foi bem simples: Criar um sistema onde os bônus variem entre +10 e -10. A precisão então ficou restrita e espremida entre dois valores. Assim, ao invés de se ter um número médio, tinha-se um parâmetro máximo (que permite raras exceções) ou um parâmetro mínimo.

Outra coisa importante foi que todas as classes teriam o mesmo modificador de proficiência e esse modificador teria um avanço bem gradativo. Mostramos:

Níveis ou Dados de Vida (DV)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
Bônus de Proficiência +2 +2 +2 +2 +3 +3 +3 +3 +4 +4 +4 +4 +5 +5 +5 +5 +6 +6 +6 +6

Outro diferencial é o de os itens mágicos variarem de um bônus de +1 para um bônus máximo de +3 nos ataques e +5 para habilidades e perícias.

Para assegurar esse sistema, impediu-se acúmulos de bônus de mais de um atributo, fórmulas, itens mágicos, poderes ou perícias. As situações onde o personagem tem maior ou menor chance tem o uso da vantagem e da desvantagem respectivamente.

Com ela você literalmente aumenta muito a chance de sucesso.

Por exemplo: Grog tem +5 para acertar dois oponentes de CA 12 ao seu alcance. O primeiro está de pé e o segundo está caído e isso lhe dá vantagem ao ataque. Com isso Grogg tem 70% de chance de acertar o primeiro é  91% de chance de acertar o segundo[1]

Assim, a precisão fica restrita a balizas bem definidas e apenas com atributos muito altos haverá enorme abismo entre personagens. A pedido dos jogadores de teste, foi feita uma fórmula matemática que dá boa margem para acertos e erros.

Este a meu ver é um dos charmes da 5ª edição. Apesar de ela parecer ficar sempre na mesma, as regras permitem um jogo emocionante com poucas mudanças. Mudar um modificador de acerto em +1 ou a CA ser aumentada em +1 não quebram o sistema

Por exemplo: Grog tem +5 para acertar dois oponentes de CA 13 ao seu alcance. O primeiro está de pé e o segundo está caído e isso lhe dá vantagem ao ataque. Com isso Grogg tem 65% de chance de acertar o primeiro é  87,75% de chance de acertar o segundo[1].

Assim, o jogo ficou com outro tipo de equilíbrio. Houve um achatamento das probabilidades, em prol de um jogo emocionante do começo ao fim e mesmo que um Guerreiro de nível 10, com a força máxima de 20 e um item mais três, você teria +12 de bônus para acertar, um número que certamente ele alcançaria entre o 5º e 6º níveis das edições anteriores. Essa escalada gerava uma série de deficiências.

Conclusão – Será que a 5ª edição é a definitiva?

Apesar do enorme acerto. Vou repetir: ENORME acerto com a precisão restrita, o que tenho visto são jogadores desincentivados a procurar itens (como era no AD&D, poderes, na 4ª edição ou combos de talentos, como na 3ª edição).

O jogo parece muito imutável, muito mais do mesmo. Decidir ir de bruxo ou de Clérigo é mais ou menos decidir qual a roupa você vai usar para ir a um encontro, de tão nivelado que o sistema ficou.

De forma alguma estou criticando a 5ª Edição. Ela é genial e abre espaço para a criatividade dos jogadores (para terem vantagens), dão ao mestre segurança em projetar encontros diferenciados sem arriscar um TPK e principalmente: é impossível errar na montagem de um personagem da 5ª Edição.

Ainda assim, há mais coisas a serem discutidas. Na próxima postagem, que será mais curta, Discutiremos o dilema do Guerreiro Linear e do Mago Quadrático.


Notas

[1] Agradeço ao Victor Umberto Zwicker Gallimberti por ter ajudado com as probabilidades e análises combinatórias.

Créditos

Texto: Augusto Assad Luppi Ballalai

Referências Bibliográficas

GYGAX, Gary; ARNESON, Dave. Dungeons and Dragons Player’s Handbook. TSR. Lake Geneva: 1979.
COOK, David Zeb; TWEET, Jonathan. Advanced Dungeons & Dragons Player’s Handbook. TSR. Lake Geneva: 1989.
COOK, Monte; TWEET, Jonathan; WILLIAMS, Skip; BAKER, Richard; ADKINSON, Peter. Player’s Handbook D&D. Wizards of the Coast. Renton: 2003.
HEINSOO, Rob; COLLINS, Andy; WYATT, James. D&D 4TH Edition Player’s Handbook. Wizards of the Coast. Renton: 2008.
MEARLS, Mike; CRAWFORD, Jeremy. D&D 5TH Edition Player’s Handbook. Wizards of the Coast. Renton: 2013.

Créditos nas Imagens

Imagem dedicada: Dragon Attack, de artista não encontrado da Wizards of the Coast.

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