Jogos de Poder – Antecedentes
por Will
Imagem destacada, “A Game of Power”, de Jarek Nocon, disponível em https://www.artstation.com/artwork/N5yaVN
Narrativas focadas em intriga, política e, como diz o título, jogos de poder não são exatamente a proposta inicial do nosso amado sistema D&D, e também da maioria dos outros sistemas baseados, geralmente, em fantasia épica, sombria ou variantes punk. Isso não impede narrativas com essa proposta, mas é necessária uma adaptação tanto de narrativa quanto de mecânica. E, um desabafo de quem tem como hábito envolver intriga e política nas campanhas que narra, da um trabalho descomunal fazer a proposta ficar minimamente atrativa.
Vamos pegar outro sistema que utilize propostas envolvendo política e intriga. Olhemos para o saudoso Storyteller e seu herdeiro, o Storytelling. A criação de personagem em ambos envolve aspectos emocionais e de comportamento mais específicos que tendências, como conceito de vida, natureza da personalidade e comportamento social, mas o ponto importante são os Antecedentes. Aqui começa a diferença e o crucial para encaixar os personagens em jogos políticos: eles têm que ter ligação a algo ou alguém.
Um mero background não serve para direcionar uma proposta como essa, tem que haver uma construção ao redor disso, uma dependência entre o jogador e sua história, algo que sirva ao mesmo tempo de benefício, prejuízo e objetivo.
É nesse primeiro aspecto que gostaria de trabalhar nessa nova série de Artigos, como podem lembrar no Tempo e Cebolas, mencionei apenas três tipos de narrativa, Terror, Suspense e Ação, existe uma quarta que seria justamente a Política. Deixei-a de fora, pois o trabalho, e a maneira como ela se constrói, foge do padrão que dá base às outras narrativas.
Outro artigo muito bom à disposição aqui é sobre como trabalhar backgrounds, também dos parceiros dos Aventureiros (que pode ser visto AQUI). Uma leitura nele fornece valiosas dicas para fazer de forma narrativa a história do personagem antes dele ingressar na campanha.
Mas voltando a questão dos Antecedentes, nosso primeiro ponto no tema, gosto do termo e da abrangência dele, utilizado nos sistemas referidos: eles envolvem desde companheiros, servos, informantes a até a os recursos financeiros e as áreas de poder de influência do personagem. E esse tipo de informação é imprescindível pra essa forma de campanha.
Independente se os personagens formam uma célula aliada que defende um reino, se estão em rota de colisão defendendo facções rivais dentro de um império, ou se são conselheiros em uma democracia oligárquica. A forma com que o personagem é construído e os acessos que ele têm devido a isso permitem que o jogo consiga fluir.
Um exemplo bastante comum: personagens sem informante são uma dor de cabeça tremenda, pois dificilmente terão acesso à questão que você gostaria de ser o objetivo da disputa política, e você, pra não excluir o jogador, acabará tendo de fazer isso cair no colo dele de uma forma ou outra, ou arriscar deixar um jogador para trás. O que não seria injusto, mas certamente não é divertido.
Mas as relações entre o personagem e seus Antecedentes devem ser, como falei antes, de benefícios, prejuízos e de objetivo. Em termos claros: a história do personagem deve ser tal que o que lhe garante vantagem, também lhe imponha um prejuízo e lhe norteie a um objetivo. Novamente, como já disse antes e torno a repetir, não estou sendo um caga-regra de afirmar que as coisas têm que ser assim, estou apenas mostrando uma forma rápida, e ideal, de você construir a trama política, permitindo que a campanha flua nessa direção. A importância dessas questões ficará mais clara quando trabalharmos na ambientação em outro artigo, mais a frente.
Voltando à questão dos antecedentes, esses três pontos ajudam a estabelecer a ligação do Personagem com a trama. Jogos de Poder requerem mais do que um forasteiro ou um aventureiro, pelo menos as campanhas totalmente focadas nisso, eles precisam que o jogador seja alguém em algum lugar com alguma coisa. Isso se faz, de maneira bem mais fácil, ao trabalhar no background complementando o jogador.
Na prática, teríamos algo da seguinte maneira:
Exemplo 1): Em uma campanha de colisão (jogadores se enfrentando politicamente), um dos jogadores, que interpreta um personagem de história militar chamado Augusto, declarou que seu personagem costuma procurar informações com um sujeito chamado Rob, de quem é grande amigo.
Trabalhando no Exemplo: Exatamente nos termos do jogador, o Rob fornece a Augusto o benefício de informações confiáveis e vindas de alguém razoavelmente leal, um bom amigo. O que o jogador não sabe, e aqui o Mestre deve trabalhar por conta, é que Rob é alcoólatra e abusa da família, não que isso prejudique Augusto diretamente, mas mancha a reputação do Militar ao confraternizar com um sujeito indisciplinado gerando um Prejuízo inicial, repulsa por causa de Rob, e um problema vindouro, podem utilizar-se disso para virarem Rob contra Augusto. O objetivo aqui é bem óbvio, endireitar Rob.
Jogos de Poder trabalham em cima disso, no corriqueiro, no mundano. As batalhas campais podem envolver dragões e exércitos voadores, mas a organização do poder, suas bases e estabilização, fica a cargo de pessoas com problemas de toda sorte, que tentam alinhar isso a suas aspirações por poder. Nesse exemplo 1, Augusto tem uma fraqueza bastante fácil de ser explorada: sua fonte de informações é um homem com fraquezas bastante evidentes. Se Augusto não tomar alguma atitude para reverter a situação de Rob, ele terá sua reputação gradualmente manchada até alguma coisa pior ocorrer: Rob matar alguém, se matar pela família ter fugido, ficar incapacitado de conduzir sua busca de informações por causa do álcool ou sofrer chantagem. Mesmo que os outros jogadores não saibam, alguém em algum lugar sabe sobre a vida de Rob, e esse tipo de informação sempre encontra seu caminho aos ouvidos de quem pega bem.
Exemplo 2: Na mesma campanha de colisão que Augusto, outro jogador resolve fazer um comerciante dono de uma série de empreendimentos bancários. Ele é bastante rico e possui uma fortuna considerável recebida por herança. O jogador que interpreta o bancário Stephan disse que a fortuna herdada é consequência de seus pais terem sido aventureiros.
O que o jogador não sabe é que a fortuna, de fato, foi herança das aventuras de seus pais, mas eles obtiveram ela logrando outro casal de aliados que ficou sem nada. Os trapaceados sobreviveram na miséria nutrindo ódio e rancor pelos pais do Stephan, conseguiram se reerguer e transmitiram esse rancor para o filho deles, Laciun. Stephan recebeu um benefício de um valor considerável de dinheiro, têm com ele o prejuízo de possuir um inimigo, nos moldes de deuteragonista, como vimos, e isso lhe da um objetivo de resolver a situação, seja corrigindo o erro de seus pais, conquistando um aliado, ou eliminando seus opositores.
Lembre-se de deixar claro aos jogadores o quanto eles poderão pedir para montarem seus personagens, e que tipo de benificios terão. Deixe claro a proposta da campanha. O sistema que sugiro também serve como fiel da balança: quanto mais o personagem “recebe” como vantagem em seu background, mais problemas ele traz consigo para o decorrer de sua história.
É como a vida real, quanto maiores as relações e ligações de um indivíduo, mais frequentemente ele acaba envolvido em resolver problemas que não dele, apenas para poder sustentar as relações que ele tem.
Nem todas os Prejuízos devem ser algo oculto, às vezes eles podem estar as claras e o jogador ter ciência disso de imediato.
Exemplo 3) Na mesma campanha dos outros dois exemplos, um dos jogadores cria uma personagem chamada Ydara. Ela cresceu na vida da ralé e atingiu a nobreza através de seu esforço, esperteza e corpo. Outrora prostituta, Ydara agora é uma cafetina que retira seu sustento do trabalho de outras mulheres que, como ela, estavam largadas na sarjeta. Essa descrição breve de Ydara deixa claro que ela possui uma fonte considerável de Recursos, é possui vários Servos a sua disposição e que trabalham para si, é reconhecida na nobreza tendo um Status entre eles. Em contrapartida ela tem uma Fama ruim que facilmente pode ser usada para chantagem contra puritanos, e sofre com outros tipos de deboche devido a seu passado, além de sua fonte de sustento ter uma fraqueza bastante óbvia: chancelamento legal. Ydara também possui vários objetivos, a maioria de seus prejuízos não tem solução prática, mas é possível trabalhar e diminui-los. No entanto, sempre estarão ali para incomodá-la
De uma forma resumida e em síntese, em uma maneira fácil de adicionar à ficha:
Benefício: em sua essência é uma vantagem que o jogador possui por sua ligação com a ambientação e o cenário, embora sua descrição no background possa ser bastante genérica, na hora de transpor isso para a mecânica, o benefício deve ser bastante claro e específico.
Nos exemplos usados, seria desta maneira.
Augusto: Informante leal (Rob)
Stephan: Fonte de renda constante (100 Peças de Ouro/Semana, patrimônio líquido de 3000 Peças de Ouro.):
Ydara: Status perante a nobreza (conhece bem a corte, fácil acesso ao governo), Fonte de renda constante (30 Peças de Ouro/Semana, patrimônio líquido de 750 Peças de Ouro), Servos (8 Prostitutas)
Prejuízo é em sua essência a fraqueza que aquele benefício possui, não precisa ser específico como o benefício e nem sempre estará às claras, em geral fica melhor como descritivo para que possa providenciar a maior gama de opções de ganchos.
Nos mesmos exemplos usados, poderíamos deixar assim, logo após o respectivo benefício:
Augusto: (Rob, alcoólatra e violento em casa).
Stephan: Nada. Mais tarde quando descoberto, seria algo como: Inimizade (família de ex-companheiros de aventuras dos pais).
Ydara: Má Fama (ex-prostituta) e Problemas Legais (cafetina)
Objetivo é de propósito múltiplo, pode ser uma maneira de melhorar ou retirar o prejuízo, ou uma forma de manter o benefício ou até mesmo melhorá-lo. Em geral o objetivo fica a critério do Jogador, ele quem dará o norte para seus próprios problemas. Ao mestre cabe no máximo uma orientação e permanecer aberto ás possibilidades propostas pelo jogador.
Então, usando a dica, na hora de fazer a ficha do personagem deixe claro a ele quais benefícios ele possui por conta do background dele. Esclareça os eventuais prejuízos que ele venha a ter por causa disso, ao menos os que ele tem ciência, e deixe claro que esses prejuízos podem ser revertidos ou anuviados.
Não existe uma regra exata para a aplicação disso, mas considere que todos os jogadores devem começar em iguais condições de jogo e ação. Se algum deles requisitar mais benefícios que os demais, aplique prejuízos o suficiente para equilibrar a situação. Nem todo benefício necessariamente deve vir acompanhado de um diabo pendurado, o bom senso é preponderante nessa situação.
A maioria dos sistemas mais novos já prevê uma maneira de adequar o personagem ao cenário trabalhando seu histórico, às vezes com questões mecânicas envolvidas, o que torna o macete que propus aqui um complemento mais aprofundado para esta questão.
Esse macete não precisa ser utilizado exclusivamente em campanhas com a proposta de Jogos de Poder. Ele ajuda a complementar e encaixar o personagem no cenário além de fornecer bons ganchos e side quests para o Mestre propor.
Levando a exemplo os sistemas mencionados como inspiração para isso, é bom ressaltar que jogos assim, com esta proposta, têm um foco maior em cada personagem individualmente. A ideia original e principal e batalhas por influência e poder, só que isso se sustenta através do dia-a-dia dos participantes.
Os jogadores têm que entender que ataques frontais são vistos como estupidez e na maioria das vezes é suicídio, que eles acabam tendo que vencer seus oponentes através das fraquezas deles, e eles farão isso com os jogadores também.
Muito mais interpretativo e baseado em cenas e diálogos, narrativas com a proposta de Jogos de Poder tendem a ser mais calmas, diria que sonolentas para jogadores ávidos por ação, aonde a interpretação é o ouro do jogo.