Afinal, Ele Sabe ou Não?
por Will
Imagem destacada, “NPCs”, de Francis Brunet, disponível em https://www.artstation.com/artwork/eJX1D
A tensa relação entre os jogadores e os PdM’s costuma ser um trabalho árduo na longa tarefa que é evoluir como jogador. Todos possuímos vícios narrativos, pequenos hábitos e comportamentos que interferem de forma negativa em nossas histórias, que com o passar do tempo aprendemos a corrigir. O mais difícil, a meu ver, foi trabalhar na relação dos jogadores com os outros personagens que era do meu encargo interpretar.
Construir uma boa relação dessas têm muitas vantagens, e melhora de maneira visível a qualidade do jogo, o interesse dos jogadores e a facilidade com que as cenas transcorrem. Pretendo começar, a princípio, como que aprendi sobre isso, e também amarrar essa ligação dos PdM’s a um assunto que tratei mais adiante no artigo: Pistas e Desinformações.
Mas vamos começar pelo início.
Circunstância que todos os jogadores e narradores já passaram foi a de explicar o que é RPG. Você normalmente segue a seguinte explanação: explica como se passa o jogo, mostra o que são sistemas e cenários, explica as distinções da mesa (narrador e jogador) e explica o que é o jogador e o que é o narrador por fim. Quando perguntam o que o narrador faz? Não têm como, a resposta normalmente é algo do tipo “Ele é o que os jogadores não são”.
Sim, o resto.
Todo o resto.
Dos porcos sequestrados pelos goblins, ao mercador mal intencionado comprando itens de mercado por porcentagens muito inferiores às de venda (balanceamento), ao rei que aos primeiros problemas chama um grupo de desconhecidos, duvida de suas capacidades por horas a fio e os manda para resolverem um problema pivotal (esse meme é bom), todos eles são PdM, NPC e os “outros”.
Seja como for que sua mesa os chama, Personagens do Mestre, Non Playing Characters e etc, esses personagens desempenham vastas funções para a boa saúde da mesa. Como por exemplo, ajudam a sustentar plots complexas, dar a impressão de vida ao cenário, enaltecer e punir os jogadores. Enfim: não dar a proposta de Shadow of Colossus a todos os seus jogos, a menos que esse seja o plano.
Mas não é possível criar um background, lorota, história, etc., complexo e longo para todos os PdMs. Não é possível pois você perde tempo e criatividade investindo longas páginas na história do seu José, o perneta veterano de guerra que passa os dias fumando cachimbo e vendo a talaricagem na vizinhança, para, na maioria dos casos, os jogadores simplesmente o cumprimentarem e fazerem piadas da falta da perna. Também não é aconselhável investir em exagero em personagens muito importantes, e dar espaço para o jogador pensar que aquele personagem é “você dentro do jogo” ou “esse cara é apelão”, e talvez possam comentar “melhor matar, vai encher o saco”.
Garantir que seus jogadores entendam a importância da interação com PdM’s é o primeiro passo para que o investimento nesses personagens seja mais lucrativo. Os PdM’s são responsáveis por boa parte da emoção que o jogo consegue passar: são eles com quem mais frequentemente os jogadores criam suas relações de amor e ódio, são seus melhores amigos e rivais, são as donzelas em perigo ou a cavalaria chegando através da parede, é o vigarista que os envia para além de onde judas perdeu as botas ou o velhinho gente fina que empresta a herança da família para que eles espantem os goblins ladrões de rabanetes.
Algumas mesas podem ser compostas por jogadores que simplesmente ignoram a interação, passando reto por quase todas as ocasiões sociais, resolvendo-as através de rolagens. Nessas situações, investir muito em PdM’s não é algo que valha a pena. Sem julgamentos aqui, se jogar dessa maneira é divertido, se é satisfatório a todos os jogadores, então não mudem, continuem assim. Cada um faz do seu jeito e o objetivo é todos se divertirem e se entreterem com o que foi feito. Porém, este artigo é reservado àqueles que justamente querem transformar isso em algo mais intenso.
O primeiro passo foi sugerido no artigo anterior, sobre Tempo e Cebolas, a necessidade de uma interação, um diálogo, antes de solicitar rolagens. Se sua mesa não é habituada a isso, comece de uma forma breve apenas pedindo que abordem e conversem um pouco antes de rolarem. Se você já faz isso e quer aprofundar, permita que os jogadores levem uma conversa de fato. Ao final, analise os argumentos deles e o quanto eles conseguiram, de fato, convencer o PdM (que é você, afinal de contas). Se foram convincentes, conceda-lhes em segredo um bônus e peça a rolagem. Um bom macete aqui é analisar a dificuldade do teste, que você daria, com o bônus deles, acrescentando quaisquer vantagens que você vá lhes dar pelo diálogo, e somar um 10 (como se tivessem rolado o 10 no d20), se isso passar a CD dispense a rolagem, os caras levaram no papo.
Mas por que eles interagiriam com um PDM? Você não precisa descrever alguém notório, extremamente belo e interessante, não, faça-os abordar o seu José, que além de vigiar a talaricagem ainda têm bons ouvidos para os comentários de viajantes sobre o ataque de goblins. Lembre-se de Tempo e Cebolas, você está aprofundando o plot, e com o tempo, é consequência os jogadores começarem a correr atrás das informações, e essas informações normalmente vem na forma de Pistas ou Desinformações.
Aliás, como havia dito no início do artigo, pretendo apresentar essa relevância na importância dos PdM’s, o trabalho da informação do plot através deles.
Aqui façamos uma pausa sobre os PdM’s, retornaremos a suas outras funções mais tarde, noutro artigo, e nos concentremos numa das melhores funções de um personagem não-jogável: informações.
Pistas: imagine que a verdade é um Cubo de Rubik, só que além de estar misturado, ele esta sem vários pedaços que so podem ser colados em sua respectiva cor original. As pistas são ou os Pedaços ou o Movimento para chegar até a verdade que seria o Cubo totalmente resolvido. Não é possível realizar o Movimento sem que os Pedaços envolvidos estejam no seu lugar sem incorrer no risco de errar. Mas é possível resolver o Cubo sem todos os pedaços. Metáforas à parte, eu particularmente utilizo as pistas desta forma:
Pedaços: são fragmentos da verdade, mas não mostram ela por completo, particularmente são pistas visuais, táteis e manipuláveis, como por exemplo a marca queimada da mão de um ogro sobre o ombro de um goblin, coisas que mostram um fragmento da verdade, mas raramente conseguem fazer alguma coisa sozinhas além de levantar dúvidas. Os Pedaços normalmente são vistos nas cenas dos fatos, ou carregados de lá por PdM’s. Pedaços são dispensáveis, você não precisa pensar em todos, mas deve sugerir o suficiente para que o Cubo se forme na mente dos jogadores e os motive a ir atrás dos Movimentos.
Movimentos: são os lugares, caminhos e fatos necessários para se chegar a verdade, são coisas que necessariamente têm que ser obtidas, vistas, caminhadas, e não há como escapar. É a sua rota para a verdade, ou uma alternativa que eles consigam montar através de uma lógica produzida pelos pedaços que você forneceu, e se materializa com boatos que os PdM’s ouviram, com lugares aonde os fatos aconteceram e algumas vezes com o testemunho de um pedaço do fato pelos jogadores. Os Movimentos são necessários.
Desinformações: nem todo mundo sabe de fato o que aconteceu, algumas pessoas querem apenas um pouco de atenção e falam sobre o assunto que parece interessar aos outros, outras estão de sacanagem e querem ver alguém caminhar a esmo e se lascar, talvez alguns estiveram em estados mentais alterados e entenderam errado a situação (traumas da violência, bebedeira, insanidade ou uso de narcóticos) e outros querem intencionalmente encobrir a verdade. Quanto mais camadas você coloca no plot, mais Desinformação deve surgir. Não há necessidade de dividir a Desinformação quanto a sua função, mas sim você a divide de acordo com quem desinforma, qual a intenção por trás de enviar o PJ para um beco sem saída, por que o PdM quer aquilo?
Ocultação: esse tipo de desinformação é feita por antagonistas, lacaios do vilão e rivais. O objetivo é justamente dar um perdido nos jogadores. Essas desinformações podem custar uma sessão, recursos do grupo e, normalmente, os fazem perder muito tempo. Recomendo que esse tipo de recurso seja usado com bem poucas, ou quase nenhuma, oportunidade de checar a informação (explicado mais adiante). Motivo? Cria a desconfiança no jogador, ao mesmo tempo que alimenta a impressão de que enfrentam alguém articulado e presente, serve para o Suspense e para o Horror. Exemplo? Os caras foram pedir uma informação para um viajante na estalagem, e o viajante os mandou para a região de caça de uma matilha de lobos. Plot Twist: o viajante, na verdade, era um dos lacaios do Ogro, exemplo do texto anterior, e estava na cidade comprando comida.
A vantagem do uso de Ocultação é a extensão da campanha, a oportunidade dos jogadores terem um rosto para perseguirem e odiarem, oportunidades de aumentar a EXP caso eles estejam abaixo do necessário e de dar espaço para alguma side-quest que queira implementar.
A desvantagem do uso de Ocultação é que ela alimenta desconfiança com PdM’s, toma algum tempo na maioria das vezes, e os jogadores provavelmente vão querer gastar seu réu primário com homicídio ou tortura se voltarem vivos do embuste.
Confusão: é quase uma meia-pista, ou indica o local de um Movimento ou descreve uma parte do pedaço, aonde metade dela seria informação real e a outra metade seria uma embalagem de desinformação. Não há maldade fática no PDM que emite essa informação, ele simplesmente não conseguiu compreender o que viu, ouviu, sentiu. Ele pode ser o cara bêbado que dormiu no coxo de vacas e assistiu a pilhagem goblin mas os via na forma de demônios de fogo, por causa das tochas. Pode ser, por exemplo, a pessoa insana que viu o próprio ogro em meio a floresta e aos gritos atravessa vilarejos dizendo que o diabo voltou. Enfim, um misto de verdade com mentira, que deve ter checagens de informações ainda menores que a Ocultação, porém mais incisivas, se os personagens conseguirem encontrar através do louco o lugar aonde ele viu o demônio, permita que haja lá pegadas que indiquem a existência de um ogro. Se conseguirem tirar a bebedeira do pudim de canha, ou lerem sua mente através de magia, descreva os goblins claramente.
A vantagem do uso de Confusão é que ela exige criatividade dos jogadores, normalmente estimula eles a lidarem com os problemas do PDM, pode ser usada para alimentar novas relações e amizades, e também por que ela indica dentro das Desinformações o caminho para Pistas.
A desvantagem do uso de Confusão é que como costuma ser uma informação mais difícil de ser encaixada na trama da verdade, exige mais do narrador, e pode ser ignorada assim que os jogadores verem as dificuldades existentes nisso, além de tomar um tempo razoável de campanha.
Um trouxa, dois trouxas: Nem só jogador deve ser enganado ou feito de imbecil, PdM’s também podem ouvir uma Desinformação e simplesmente passar ela adiante. Na verdade, o Um trouxa, dois trouxas é como se fosse uma corrente que começa em outra Desinformação e chega aos jogadores através da interação com um PdM que ouviu sobre isso.
A checagem desta Desinformação deve ser bem fácil, ou seja, os jogadores devem perceber que o PdM está falando sobre algo que ele ouviu falar, e que provavelmente não sabe, e que não está dando muita certeza mas é o que sabe sobre o assunto, a menos que quem lhe passou essa informação tenha a ideia exata de querer ludibriar (the plot thickens!). Nesse caso, a ideia é que realmente sejam feitos de trouxas. Um trouxa, dois trouxas também pode existir por si só, ou seja, o PdM pode achar que ouviu sobre alguma coisa e quer ganhar a simpatia dos jogadores.
Um exemplo bastante útil dessa forma de desinformação é o vilão, antagonista ou rival, vender uma informação falsa, ou plantá-la em um outro PdM conhecido por ser um bom informante. Outro, caso arqui-inimigo do grupo seja um bom usuário de magia, é plantar a informação na mente, diretamente nas memórias de algum jogador, e fazer ele imaginar que encontrou essa informação nas ruas, ao procurar entre as pessoas. A essência em todos os casos é a mesma: o logro.
Usar Um trouxa, dois trouxas aumenta consideravelmente a campanha, e enrola o plot, pois além de resolver a pista falsa e confrontar o fofoqueiro, eles terão de, na sequência, checar quem enganou o primeiro trouxa, ou procurar onde ele encontrou a informação em primeiro lugar. Por isso que a checagem sobre isso, a menos que seja a intenção de algum antagonista, rival e vilão que eles percam tempo, deve ser fácil.
As vantagens de Um trouxa, dois trouxas além de aumentar o tempo de campanha, ela aumenta facilmente o plot e puxa uma das outras Desinformações já planejadas. Também permite que os jogadores consigam ter um rosto de quem intencionalmente enganou o primeiro trouxa, dando-lhes uma preciosa Pista, apesar dos pesares.
As desvantagens são bem óbvias: perda de tempo e provável reação violenta ao pobre primeiro trouxa.
Sem Maldade: a mais simples, e também mais comum fonte de Desinformação, o PdM não têm segundas intenções maldosas, não esta sendo feito de lacaio ou imbecil de alguém, ele apenas quer ajudar, conversar, ter atenção e tenta dar informação de forma vaga e imprecisa: seja confirmando o que os jogadores perguntam (“Você viu um boto rosa no vulcão?” “Vi sim, inclusive estive por lá hoje para colher amoras, aliás querem tomar um suco de amoras? Minha esposa faz um delicioso”), seja inventando uma história plausível ou aproximada para aumentar a conversa, ou então dando a primeira resposta em mente para encerrar a conversa e seguir a vida. Desinformações Sem Maldade são facilmente checadas como falsas, basta seguir a procura e logo alguém com mais credibilidade deve desmentir a história ou, ao menos, indicar que a direção não é por ali.
As vantagens de Sem Maldade é que ele permite uma interação mais próxima do real com PdM, afinal nem todo mundo sabe de fato as coisas, e as vezes as pessoas só querem atenção de conversa com quem parece imponente (jogadores), não toma muito tempo pois é facilmente checado, e permite que ganchos possam ser implementados à plot através da interação com os PdM’s.
As desvantagens desta forma de desinformações são poucas, quase nenhuma, além de tomar um pouco do tempo em meio às buscas e, talvez, caso os jogadores não confirmem as informações, possa fazê-los perder tempo fazendo uma busca por um boto rosa imune a fogo num vulcão que também têm amoras.
Quando se trabalha com Pistas e Desinformação lembre-se de permitir que os jogadores consigam checar o que lhes foi informado, e isso deve ser feito na mesma dificuldade que conseguiram a informação, ou na dificuldade proposta pela Desinformação utilizada. Quanto mais difícil foi obter a Pista, mais difícil é alguém conseguir provar que ela é falsa ou não. E vice-versa.
Mas PdM’s não são apenas fonte de informação, embora sejam as melhores para isso na construção de plots complexas, mas isso é conversa para outro papo.
Espero vê-los na próxima semana, até lá!