Sombra e Luz

por Will
Imagem destacada, “Ruin Fight”, de Marco Gorlei, disponível em https://www.artstation.com/artwork/3GL4m

Depois de discutirmos sobre a Cavalaria, como Construir Tramas e a teia de Informações, é chegada a hora de darmos uma olhada com carinho sobre o contra-peso dos PJ’s: o “inimigo”. Tudo gira ao redor da relação PJ’s e o “Adversário”: as informações são para lidar com ele, a Cavalaria chega para ajudar os PJ’s contra ele e as Tramas foram provavelmente tecidas por ele. De uma forma bem resumida, pode-se dizer que o “Adversário” é a segunda pessoa mais importante da campanha, a primeira são sempre os PJ’s.

Existe uma larga escala de vilania, desde os seres mais odiosos e asquerosos da existência, até aqueles vilões que fazem os heróis duvidarem de suas próprias convicções. Mas nem só crueldade e a propensão dele à maldade definem o Adversário dos PJ’s. A relação entre eles também ajuda a construir a Trama e dar uma caprichada na história. Eu costumo construir os “Adversários” dos meus jogadores usando Relações, graus de Vilania e deixando claros os Motivos. Com essas questões em mente, a criação de “Adversários” fica rápida, cria um norte fácil do que têm que ser feito e construído para não parecer um “Adversário” simplório.

As Relações tratam da maneira como o “Adversário” e os PJ’s se comportam em relação um ao outro. Às vezes, ela já vem construída desde o background do PJ, quando o narrador acrescenta alguns fatos à história do jogador para já entrelaça-lo ao “Adversário”, ou ela é feita no decorrer das sessões, com as aparições constantes e a influência dele na história dos jogadores.

As Relações em si são bastante simples de você definir, ou são de Rivalidade, de Indiferença, de Deuteragonismo, ou a clássica Inimizade. Elas determinam e norteiam o comportamento do “Adversário” em relação aos jogadores, mas também facilitam para o Mestre definir o que exatamente o vilão está fazendo enquanto os jogadores estão se aventurando.

A Rivalidade é vista em muitos animes. A clássica é a de Goku e Vegeta, ou seja, há uma competição entre os jogadores e o “Adversário”, pode ser por renome em um reino, por dinheiro, por fama, por habilidade e etc. Aqui não estamos falando sobre um querer ser melhor que o outro. A “Adversidade” deles é alimentada por isso. O Rival pode ter um grupo de aventureiros que quer ter uma fama maior que a dos PJs. Ele pode ser o líder de um bando de mercenários que compete pelos mesmos trabalhos dos PJs.

O limite da Rivalidade é a competição. O “Adversário” existe em função dos PJs e não é possível manter a relação sem isso. Logo, dificilmente o Rival vá querer sem motivos maiores exterminar ou acabar com os PJ’s.

O prazer do Rival é a superação. Defina qual é o ponto em que o Rival compete com os jogadores, fama, dinheiro, habilidade e etc., e foque nesse aspecto para definir as ações do Rival.

Fica também a seu critério o quão obsessivo o Rival é pela competição, e se ela é alimentada e existente pelos dois lados, ou se apenas o Rival enxerga que há uma disputa.

Uma cena clássica envolvendo Rivalidade é os jogadores e o Rival adentrarem a mesma masmorra atrás do mesmo item, virando uma corrida que pode culminar em combates não letais. A disputa pela mão de uma nobre também alimenta boas rivalidades e, no mesmo sentido, vão as disputas por títulos de nobreza, favorecimento de um deus, patronato de algum rei.

A Indiferença é simples, mas também é uma das mais poderosas maneiras de você engrandecer o “Adversário” e torná-lo mais ameaçador. O ponto central é que o “Adversário” não é exatamente um “Adversário”, pois ele não se antagoniza diretamente aos jogadores. Para ele os PJ’s são insignificantes ou não são dignos de sua atenção.

Estamos falando em graus de arrogância e prepotência aqui, ou de confiança e desnível de forças, como Nosferatu Zodd e o Skull Knight em seu primeiro reencontro em Berserk. Esse desnível pode ser real ou não, a questão é que para o “Adversário” os jogadores não existem. Ele toca seus planos, seus esforços e suas tramas desconhecendo a antagonização dos jogadores.

Nesse tipo de recurso, os jogadores correm atrás de um inimigo que potencialmente não se sente atrapalhado pelos empenhos dos jogadores e que muito provavelmente só terão a atenção dele no final da história, perto do clímax do último combate.

No uso da Indiferença a atenção do “Adversário” pode ser avassaladora, em uma situação em que os jogadores precisam parar o inimigo, mas não se encontram em condições de suportar ou sobreviver a seu revide. É bastante útil em campanhas com o foco em Furtividade, Guerrilha e Sabotagem, onde o combate direto é suicídio.

Mas a Indiferença também pode ser por pura e simples ignorância. O “Adversário” não sabe da existência dos PJs, ou não sabe como lidar com eles, ou simplesmente acha que eles são “Vermes inferiores indignos de minha atenção” enquanto cerra os punhos e segue a vida.

O Indiferente não precisa ser de fato mais poderoso que os jogadores, embora seja uma combinação fantástica, ele precisa apenas ignorar os esforços dos jogadores.

É essencial no uso desse tipo de “Adversário” que ele toque seus planos independente do que os jogadores façam, é como um trem desgovernado, ele segue em frente sem ligar para o que está no caminho.

Um bom uso disso são campanhas envolvendo destruição global, onde o “Adversário” está em posse de alguma tecnologia, magia, artefato e é uma questão de tempo até que ele destrua o mundo. Conquista global seguindo esses aspectos também são efetivas usando a Indiferença.

O Deuteragonismo é em muitas maneiras similar ao Rival, mas em um aspecto mais amplo e mortífero: o Deuteragonista é, no papel do teatro, o segundo personagem mais importante, e aqui nessa definição ele quer ser o primeiro.

Diferenciando do Rival, o Deuteragonismo implica em uma competição real, reconhecida tanto pelos PJ’s quanto pelo “Adversário”. Eles sabem que têm um competidor e sabem exatamente o que estão disputando. Talvez tenham algumas regras entre si, ou não, mas não se trata de uma Rivalidade que apesar de poder chegar a níveis doentios, ainda é amistosa. Aqui falamos de uma sensação “Ou eu ou ele”.

A relação do “Adversário” com os PJ’s nesse caso têm como ponto de partida o Objetivo. Tanto os jogadores quanto o “Adversário” têm o mesmo objetivo em mente, e a campanha gira ao redor dessa disputa.

Um Rival pode ser até secundário, um adversário temporário e as vezes um improvável aliado. O Deuteragonista estará ali desde o início, ele é tão importante quanto os PJ’s a ponto de se receber espaço, tomará o lugar deles dentro do cenário de campanha.

Em termos claros, enquanto o Rival se contenta em ter mais fama que os jogadores, por exemplo, o Deuteragonista deseja tudo aquilo que os PJ’s poderiam receber por disputarem o mesmo objetivo. Ele quer ser e ocupar o lugar dos PJ’s.

Claro que isso não deve ser possível, afinal os jogadores devem ser os protagonistas das sessões, o foco das narrativas, os heróis que se fazem lendas. Então, um pouco de cuidado é necessário ao utilizar esse tipo de “Adversário”.

É simples pensar em como ele agiria, o que planejaria e aonde iria. Basta apenas se perguntar “Se meu objetivo é esse, o que faria se ele fosse um PJ?”. Tomando cuidado para não oprimir demais os jogadores e tirar deles o foco da campanha, essa pergunta costuma dar a base para a Trama se desenvolver.

Um exemplo de Deuteragonista em uma condição de “Adversário” é o Bizarro tentando tomar o lugar do Super Homem (o “objetivo” é a adoração e amor do público, embora o Super Homem em si não dispute isso, o Bizarro vê como foco de ambos), é a relação entre Ragnar Lothbrok e Rollo na série televisiva Vikings (seria rivalidade, mas Rollo, embora tenha uma competição saudável com o irmão, não define sua vida como a disputa entre ambos, ele quer o que Ragnar têm. Diferente dos filhos de Ragnar e suas disputas amorosas).

Um Deuteragonista é facilmente utilizado em campanhas mais politicas, onde inúmeros fatores contribuem para a felicidade e sucesso dos jogadores, e não apenas dinheiro e experiência, e é necessário que eles convivam e joguem junto com o cenário e o ambiente. Devido a isso, ele é pouco utilizado, é necessário um esforço muito grande, e um grande empenho, para que seja útil um “Adversário” cuja competição com os jogadores se dê a ponto de ultrapassar a simples rivalidade.

O Inimigo é o mais comum e o mais fácil de ser construído, mesmo que isso incorra em vários clichês. Ele sabe da existência dos PJ’s, nutre por eles um sentimento negativo e hostil (medo, ódio) e se esforça para infernizar a vida dos jogadores e destruir suas conquistas.

Não há muito mistério, o Inimigo é a sombra que a luz dos PJ’s faz. Ele é a força que atrapalha seus empenhos, é o motivo da trama, a mente maquiavélica que cria verdadeiros infernos no cenário enquanto os jogadores tentam impedi-lo.

Entre os PJ’s e o Inimigo há uma relação real, ambos têm ciência um do outro e de sua força mutuamente destrutiva. É como uma queda de braço constante, se os jogadores não impedirem o Inimigo, a história deles será mais curta do que gostariam.

Exemplos de Inimigos são bem comuns, praticamente todos os super-heróis têm uma vasta gama de Inimigos que gostariam de simplesmente destruí-los ou fazê-los sofrer a ponto de abrirem mão de sua resistência, quebrando, assim, a mentalidade de herói, ou então forçá-los a se juntar a eles: Darkseid e Super Homem (destruição), Batman e Ra’s Al Ghul (conversão), Batman e Coringa (quebrar), Goku e Freeza (destruição).

De uma forma geral, quase todas as relações entre heróis de quadrinhos e seus adversários caem dentro da relação de Inimigo.

O caso mais comum em campanhas é quando os jogadores atravessam o caminho de algum PdM, e ele, devido ao sucesso deles em impedir seus planos, faz de sua tarefa pessoal acabar com os jogadores. É uma noção de perseguição e polarização.

Em uma comparação de objetivos dentro das Relações, temos a seguinte:

Rival: o objetivo é superar os PJ’s ou um PJ em relação a um aspecto, que pode ser de conhecimento mútuo, ou a disputa pode ser unilateral apenas.

Indiferente: o objetivo é alheio aos PJ’s, e existe e transcorre com ou sem a presença dos jogadores.

Deuteragonismo: o objetivo é se tornar o que os PJ’s são.

Inimigo: o objetivo é destruir os PJ’s.

Normalmente, é meu primeiro passo para planejar uma campanha é definir o “Adversário” dos jogadores. E a primeira coisa que faço é determinar qual a relação entre ele e os jogadores. Com base nisso, você pode amarrar as histórias e já começar o jogo deixando claro como as coisas chegaram até ali.

Um Rival provavelmente já será conhecido dos jogadores, ou de um deles, logo na história do personagem.

Um Deuteragonista também já se fará presente como uma ameaça constante a eles, talvez já tendo até mesmo vencido algum embate para tornar mais acirrada e disputada a confrontação.

Um Indiferente não é tocado diretamente na história dos personagens, mas mencionado como uma força inevitável e crescente, algo que os jogadores percebem, sentem, mas ainda não antagonizaram.

Um Inimigo se torna presente tão logo os jogadores atravessem seu caminho.

Vale lembrar que: não precisa ser apenas um. E também não precisa ser em relação ao grupo todo. O empenho por parte do Mestre é muito maior, mas a gratificação do jogador é algo memorável.

O paladino do grupo pode ter uma relação com um “Adversário” de Deuteragonista. O “Adversário” quer o lugar dele como o favorito da divindade, e se esforça para sabotar e enfraquecer o Paladino.

O guerreiro do grupo têm um duelista como Rival, ambos já se encontraram inúmeras vezes e coletam uma disputa acirrada de vitórias em duelos, decididas por detalhes sem deixar clara a supremacia de um deles.

O ladino se criou em uma cidade dominada por um barão do crime. Tudo que ele tentava roubar, o barão já tinha mandado alguém. Várias vezes ele teve de roubar dos lacaios do barão aquilo que ele precisava, mas nada que fosse significativo para parar os avanços do barão que continuava Indiferente: ele viu a cidade se tornar um parquinho desse rei do crime, e agora parece que ele está avançando para submeter o reino todo.

O mago, em seus empenhos, acabou quebrando a maldição jogada sobre o filho do rei. Isso despertou a fúria do bruxo que amaldiçoou a criança, que fez de seu objetivo pessoal transformar a vida do mago em um inferno, e o fez fazendo uma declaração pública de Inimizade.

E isso tudo pode acontecer enquanto outro vilão tenta libertar um grande demônio ou diabo. Mas qual a relação desse outro vilão com os jogadores? Bem, me diga você, como faria?

Como a luz dos jogadores projeta a sombra de seus vilões? O quão grandioso deve ser um adversário deles para que justifique sua oposição diante do heroísmo dos jogadores? Ou os jogadores são as sombras da vilania diante dos heróis? Papéis invertidos podem ser facilmente montados usando essa mesma organização.

Os graus de Vilania e as Motivações veremos nos próximos artigos. Até lá pessoal.

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