A Vilania
por Will
Imagem destacada, “Summoning the Dead”, de K., disponível em https://www.artstation.com/artwork/k4wlRl
Vilania, substantivo feminino que determina o atributo ou caráter de quem é vil. Vil, por sua vez, é um adjetivo utilizado para representar toda forma de características desagradáveis e desprezíveis. Vilão, por sua vez, descartando o significado clássico e obscuro de caracterizar quem mora em vilas ou está fora da realeza e nobreza, é um substantivo que determina uma pessoa caracterizada por ser Vil.
Então, para sermos mais específicos e precisos, Vilão, que utilizamos para designar os inimigos de nossos PJs e histórias, é uma definição um tanto imprecisa e muitas vezes errada. Afinal, nem sempre os adversários de nossos jogadores são caracterizados por Vis, as vezes são tão nobres e heroicos como nossos jogadores, só estão do outro lado da disputa.
É por isso que quando planejamos um Adversário, o ideal é que determinamos em uma escala de Vilania que ponto essa personagem se encontra: ele está na ponta mais escura capaz de tudo e dotado dos piores adjetivos, como o Coringa, ou ele representa o extremo branco, dotado de valores altruístas e puros, mas colocado no lado errado e em disputa com os PJs, ou envolto em um mistério sobre seus motivos e ações: como Sirius Black em Harry Potter, Revolver Ocelot em Metal Gear, entre outros.
Não existe faticamente uma tabela ou escala que possa utilizar para definir a situação do Adversário dos seus jogadores e a propensão deles à Vilania, que possa te ajudar em 100% dos casos. O melhor caminho é sempre comparar o Adversário que pretende criar com os Jogadores que estão na sua mesa.
Considerando que o brilho sejam as boas virtudes, e a escuridão as más, na metáfora a seguir: quem é mais brilhante, os jogadores ou o adversário? O que é mais interessante? O comportamento do adversário provoca que tipo de reação nos jogadores?
Esse tipo de perguntas, quando respondidas, praticamente definem a situação e o comportamento do Adversário, e provavelmente guiará sua construção de ficha, tramas e cenas. E digo cenas por que no momento que você constrói o Adversário com base num comportamento, conduta e nível de Vilania, é necessário que haja como demonstrar isso. Se o adversário é benevolente, os jogadores precisam saber ou presenciar essa virtude, ou você incorre no risco de criar um bom PdM e os jogadores não compartilharem com você a sua bela criação. Se o adversário é inumanamente imoral, também é necessário que os jogadores sintam, assistam, presenciem e, de alguma forma, percebam que estão lidando com um monstro.
Voltemos às perguntas. Veja como você pode, usando aquelas meras, detalhar e criar quase todo o cerne de uma campanha, ou de uma missão secundária envolvendo aquele adversário.
Quem é mais brilhante, os jogadores ou o adversário?
Lembrando que tomamos por brilhante as boas virtudes. Essa pergunta te ajuda a definir praticamente toda a campanha, ou a relação entre os jogadores e o adversário.
Mais Brilhante ou Igual: Se o Adversário é dotado de virtudes mais intensas, ou equivalentes, que os jogadores, ele é mais benevolente e honesto por exemplo, então você ou está alimentando uma disputa ou narrando para vilões. Não é muito comum se utilizar de adversários mais benevolentes que os jogadores, e é um tipo de artifício que embora traga reviravoltas impressionantes, deve ser conduzido com um cuidado e cautela.
Isso por que se o Adversário é dotado de boas virtudes, e os jogadores são razoavelmente bondosos, deve haver um motivo decente para que eles entrem em rota de colisão. Um motivo que exija que eles se enfrentem e que, a menos que essa seja sua vontade, eles não se aliem.
Se os jogadores são igualmente brilhantes, a sensação de competição é ainda maior. Nesses casos, não adianta apenas ocultar as motivações do Adversário, se seus jogadores são benevolentes eles provavelmente entrarão em uma tentativa de acordo tão logo haja o primeiro confronto. É realmente necessário que o Adversário se encontre em uma posição que ele não possa ceder, e que os personagens não possam dar o braço a torcer com facilidade.
Exemplos: O Adversário é um ex-paladino que caiu para manter um segredo que condenaria toda a sua igreja, e é obrigado a ficar em silêncio e aturar as acusações de crimes. O Adversário é o campeão de um povo que por estar em situação dramática se vê forçado a atacar vilas, saquear recursos e ocupar lugares que tenham o que seu povo precisa. O Adversário é um necromante que utiliza de trabalho braçal de mortos-vivos para auxiliar a reconstruir sua terra natal, devastada pela guerra, e por isso rouba cadáveres de outras regiões. O Adversário jurou proteger sua dama e servi-la até o fim da vida, e devido a uma doença dela, ele necessita de um composto que os jogadores também precisam, e por ser limitado, apenas um deles pode ser bem sucedido.
Note que há um padrão. O Adversário está em uma situação em que ele não pode agir de outra forma, ele tem que disputar algo com os jogadores. Ou o único caminho que pode seguir para resolver os problemas de alguém, que jurou proteger e servir, é através de uma ação que não é bem vista, mas não é egoísta em si.
Mais escuro: Aqui não há muito mistério, e na maioria dos casos esta será a situação que a maioria dos Adversários se encontra. Embora haja intensidades nesta escuridão, predomina nos jogadores a tranquilidade de que eles estão se esforçando e lutando contra um ser que o mundo, na maioria dos casos, não sentirá falta.
Independente dos Objetivos que o Adversário venha a ter, e nem de sua Relação dele com os PJs, ele usa artifícios escusos, quebra promessas, violenta pessoas e lugares, destrói e saqueia, desrespeita a vida e os deuses, é egoísta e traiçoeiro, e assim segue a lista de más condutas.
Esse tipo de Adversário normalmente não se encaixa numa situação para negociar. E se o fizerem, é por que planejam trair os jogadores ou não obedecer o acordo. Para estes seres, é mais fácil tomar do que pedir. Não é incomum que também pensem que o mundo existe para agradá-los, e o que não os serve ou agrada, deve ser morto e destruído.
Você nem precisa planejar uma colisão, ela acontecerá naturalmente mesmo que seus jogadores sejam pouca coisa mais escuros que o Adversário. Uma hora, as ambições se encontrarão, disputarão a mesma coisa, ou estarão em uma situação de que um não tolera a liberdade do outro.
Uma boa reviravolta nesses casos é o Ainda Mais Escuro, os jogadores estão acostumados a lidar com o Adversário, o cara é a definição de ruim, mas segue um código de honra. Esse código pode permitir que ele tolere e, inclusive, se alie aos jogadores em uma circunstância que ambos se deparam com alguém ainda mais ruim que o Adversário. É um clichê bastante comum essa aliança temporária, vista em vários quadrinhos e mangás, e pode ser um ponto alto da campanha.
O que é mais interessante?
Muito a ver com a resposta da pergunta anterior, mas ainda assim de tamanha importância. Essa pergunta se relaciona com a sua proposta de jogo. Basicamente o que você, como narrador e mestre, planeja. Analisando o contexto, os personagens e a história, o que torna ela mais atrativa, picante, saborosa? Um adversário odiado e detestado por todos? Uma rivalidade e disputa de desesperados? Os jogadores caçando e tentando destruir um herói mal compreendido?
Independente do brilho do Adversário, aqui estamos falando do Enredo. Enquanto a pergunta anterior diz respeito às características do Adversário, aqui é como o mundo reage a ele. O Adversário pode ser um tirano megalomaníaco, mas visto como herói e protetor de seu povo, embora ele seja mais escuro em termos de virtudes, é tratado como se fosse mais brilhante que seus jogadores.
Não existe um padrão aqui, e normalmente essa pergunta só será respondida DEPOIS que seus jogadores anunciarem as fichas e as histórias. É o que complica um pouco seu planejamento, a menos que você conheça de antemão seus jogadores e saiba quais serão as fichas. Ou, então, você definiu o norte da campanha e o que poderá ser feito.
Observe que ao responder essa pergunta, você provavelmente terá um indício de alguma alteração no seu Enredo, uma camada a mais vide Tempo e Cebolas, para acomodar esse detalhe.
As coisas, às vezes, podem ser simples, se for interessante que um Adversário mais escuro seja apenas um vilão odioso, não há muito empenho ou gasto de tempo aqui. Mas se você quer fazer com que haja uma diferença entre o que o adversário é e como o mundo o trata, deixando assim a história mais envolvente, essa pergunta DEVE ser respondida e encaixada no enredo o quanto antes.
O comportamento do adversário provoca que tipo de reação nos jogadores?
Ódio, medo, desprezo, pena, compaixão, admiração ou uma mistura de tudo isso. Novamente você vai ter que conhecer seus jogadores, e não apenas os personagens deles, para conseguir provocar essas reações, mas de forma saudável e sem ser invasiva.
É uma parte alta do ofício narrativo você fazer seus jogadores se alterarem em comportamento e reações diante de um PdM, perceber que eles tratam de forma diferente, baseado em seu estado emocional, os diferentes personagens que você usa para interagir com eles é uma confirmação que seu trabalho de mestre está exemplar.
O Adversário por si só provoca reações dos personagens depois de um contato constante, ou de uma carta de apresentação bombástica. Definir e nortear essas reações depende das cenas que você narrar. Quanto mais interações não combativas houverem entre o Adversário e os Jogadores, mais oportunidades você tem de trabalhar isso. Inclusive pode haver uma alteração entre essas emoções se isso for mais interessante.
Eu comumente utilizo os seguintes artifícios nas narrativas quando pretendo provocar essas reações entre os jogadores:
Ódio
Nada mais do que a sensação intensa e fatal de destruir o Adversário, e às vezes não apenas isso, mas como também fazê-lo sofrer. É, de certa forma, descontar na figura do oponente a raiva e frustração que os jogadores acreditam ter adquirido por causa dele.
É uma emoção relativamente fácil de provocar. Roubar os itens dos PJs costuma ser efetivo. Alguns tipos de atos e crimes, como estupro, violência doméstica, abuso, tortura, provocam um ódio tão profundo que dificilmente é possível mudá-lo sem um esforço tremendo.
Uma vez provocado, a conduta dos jogadores sempre será a destruição do Adversário e de tudo que ele representa ou fez. Mesmo personagens muito brilhantes podem apagar sua luz e descer alguns degraus no escuro para aplacar o ódio adquirido.
É uma emoção que requer mais atenção caso os jogadores e o Adversário sejam brilhantes. Há poucos recursos que os atos de uma pessoa virtuosa podem fazer para provocar ódio. Humilhação verbal em uma situação de grande importância para o jogador é uma delas. Ser induzido ao erro e cometer algum crime contra os PJs também. Ser acusado falsamente de ter cometido algo. Na maioria das vezes, esse ódio é temporário, ou os jogadores descobrem que o Adversário brilhante foi enganado, ou foram enganados sobre eles, ou as circunstâncias fazem com que o perdão de ambos os lados aconteça.
Medo
Eis um dos mais difíceis de serem trabalhados. Já discorremos sobre as questões de medo quando discutimos Tempo e Cebolas, e das dificuldades que temos para utilizar esse artifício, seja em narrativas de Terror, Ação ou Suspense.
Além de uma descrição caprichada, que deixe claro as dimensões e diferenças de poder e recursos entre os Jogadores e o Adversário, uma boa maneira de induzir o medo é utilizar a impotência. Fazer com que os jogadores sintam que nada podem fazer para evitar que o Adversário os vença, ou que encontros sucessivos entre eles deixam bem claro que a superioridade do Adversário vai além do que eles imaginam.
Matar um jogador de forma justa, rápida e em termos claros, como um duelo nos termos que o jogador escolher, costuma gerar medo. Ignorar todo o dano ou efeito mágico também. Aliás, a ideia de um inimigo invencível e invulnerável é muito assustadora, veja o Fanático dos X-Men ou o Incrível Hulk.
O medo pode ser superado um dia, quando os jogadores equivalem suas forças, forem capazes de ferir o Adversário ou superarem ele em sucessivos encontros. Às vezes, o medo só é superado quando o Adversário finalmente é vencido, noutras quando a fonte de poder e invulnerabilidade é encontrada.
Utilize medo se você quiser trabalhar um vilão Indiferente, ou um campanha de furtividade e ardil.
Desprezo
Uma variante menor do Ódio, mas menos irracional e destrutiva. O desprezo diz respeito à moral dos jogadores e a humilhação que o Adversário se sujeita para atingir o que quer. Normalmente, vê-se essa emoção em situações que o Adversário é mais sombrio que os Jogadores, e que é de tão baixa autoestima e valor próprio, que é capaz de qualquer coisa para ganhar uma vantagem.
Perceba o que seus jogadores valorizam, que condutas e comportamentos eles têm como mínimos para seu dia-a-dia. Utilize isso para determinar o que o Adversário fará para ser desprezado.
Um infernalista que invoca um demônio e é obrigado a satisfazê-lo sexualmente para conseguir um favor e enfrentar os personagens será, certamente, desprezado. Um adversário que ataca os jogadores em momentos importantes, como durante o chamado da natureza, no meio das refeições, também provoca desprezo. Uso de veneno e táticas mais sujas, em geral, alimenta o desprezo além de outras coisas.
O segredo é entender seus jogadores, ver o que eles não fariam e refletir isso no Adversário.
Pena
Normalmente, uma emoção derradeira, a última coisa que os jogadores sentem quando se deparam com seu Adversário. O momento que eles percebem que o grande bárbaro, na verdade, era um velho encarquilhado que vendeu a alma por força.
Você constrói a Pena cuidadosamente, revelando em migalhas, poucas informações sobre o Adversário, aos poucos fazendo os jogadores entenderem o que levou aquele ser a ser o que é no momento. É mais fácil você construir Pena em Adversários que detenham algum brilho e cujo confronto com os jogadores se dê na forma de uma disputa.
Deformidades físicas, idades muito avançadas ou precoces, súplicas por piedade, humilhações diante de um mal maior, perda de um ente querido, perda irreversível de algo importantíssimo, luto desconhecido. Alguns desses exemplos são efetivos em uma única cena, humilhação diante de um mal maior ou súplica por piedade, ou então a gradual revelação de que o Adversário foi um indivíduo submetido a uma adversidade brutal, como a perda irreversível de algo importantíssimo.
Compaixão
A compaixão é uma emoção que apenas se deriva da Pena quando esta for bem executada. É quando a cena é construída para que, revelada a verdade, e derrubado o Adversário, os jogadores percebam que estão diante de um indivíduo que estava fazendo exatamente o que eles fariam se estivessem na situação dele.
A maneira mais fácil de impor compaixão, é quando os jogadores descobrem que o bárbaro que saqueia os vilarejos próximos, na verdade, está juntando recursos para pagar uma bruxa que envelheceu todos os habitantes de sua vila, desfazer o feitiço, por exemplo.
Requer também um pouco de atenção sobre como seus jogadores agem, pensam e sentem. No geral, várias cenas são necessárias para a correta aplicação da Compaixão, e todas elas culminam em um único momento: o Adversário está à mercê dos Jogadores.
Ele foi derrubado, derrotado, seu corpo ferido está diante dos jogadores, não há nenhuma força nele para falar, sua respiração é toda cortada e quase insuficiente para mantê-lo vivo e, em um último esforço, ele alcança uma foto ensanguentada em seu bolso e coloca sob seus lábios, um filete de lágrimas escorre timidamente no rosto junto do sangue, ele desfere um beijo febril e murmura suas ultimas palavras “Perdão, eu falhei”. É a famosa redenção do homem morto, ou desejo derradeiro de um derrotado, nesse momento, diante da iminência da morte que se revela a motivação do Adversário, é ali que os jogadores percebem que, talvez, matar o cara seja uma escolha ruim.
De um modo geral, a Compaixão costuma ser melhor aplicada e mais facilmente construída quando o Adversário também e dotado de um brilho similar aos jogadores, e que estes não estejam nessa história interpretando um bando de sociopatas.
Admiração
Então o plano final do Adversário é revelado, detalhe por detalhe, etapa por etapa, é tão bem construído, fundamentado, articulado, que os jogadores cogitam trocar de lado.
“Tá maluco? O cara está certo”. “Velho, não sei se eu faria diferente”, muito além da dúvida incutida por um Adversário brilhante, cujas razões são fortes o suficiente para mudarem as dos jogadores, a Admiração se constrói quando o Adversário manifesta valores que seus jogadores admiram.
Novamente, conheça seus jogadores e entenda o que eles mais valorizam, o que para eles é mais digno em um indivíduo, e faça seu Adversário ser uma mistura disso.
Ele provavelmente é corajoso e valoroso, talvez seja bom com palavras e gestos, talvez ele tenha o mesmo inimigo que os jogadores. A Admiração também é construída naquelas situações em que ambos, Jogadores e Adversário, são forçados a lutarem juntos.
E também na famosa resistência final, quando os Jogadores e o Adversário, lutando juntos contra um mal em comum, veem-se diante de uma batalha perdida e precisam recuar. Nesse momento dramático o Adversário se oferece para ficar para trás. Uma vida toda de confrontos, embates entre ambos, outras emoções envolvidas também, acaba nesse momento alimentando uma admiração, mesmo que póstuma a esse personagem.
Um pequeno cuidado é necessário aqui. Exaltação demais do Adversário pode acabar fazendo os jogadores perderem o interesse na campanha por terem de dividir o palco com alguém mais intenso, ou então você pode acabar convertendo seus jogadores para aliados do Adversário, nesse caso parabéns: você acaba de começar outra campanha!
Até a próxima pessoal.