Capítulo 2 – Os Últimos da Floresta
Por Ricardo Costa
Imagem de Topo, autor desconhecido
A Comitiva da Fé seguiu Marlana e, após o portal, adentraram em um estranho túnel. O chão era negro e liso, como vidro, e as paredes curvas eram feitas das mesmas energias de matizes púrpuras que haviam visto no portal. Bingo, curioso, deteve-se e observou aqueles padrões luminosos se misturarem e, para sua surpresa, viu se formarem imagens fugazes de pessoas, criaturas, cidades e florestas, todos desconhecidos para ele. Parou e continuou a observar, como se tentasse descobrir alguém ou algum lugar familiar, quando foi interrompido pela mulher que ia a frente.
– Pequeno… adiante o passo.
– Moça… quem são estas pessoas e lugares nas imagens ? – apontou Bingo para a parede.
– São vultos dos anos pelos quais estamos passando. Mas não devemos observar, ou podermos perder o tempo de atravessar o túnel e ficaremos presos no limbo para sempre.
Bingo imediatamente arregalou os olhos e pôs-se em marcha acelerada. Dirigiram-se até uma abertura ovalada ao fim do túnel e a atravessaram bem a tempo das energias encolherem e desaparecerem completamente. No lugar aonde chegaram, era noite estrelada e a lua cheia lançava sua luz prateada por entre galhos e folhas, dispensando o uso de tochas ou lanternas. Observaram ao redor e estavam em uma floresta de arvores esparsas, de troncos roliços e altos. Ventava frio. O mateiro Limiekki examinou com seu olhar, em segundos, ao seu redor e ofereceu as primeiras palavras à Marlana.
– A casca-vermelha, o pinheiro torre… Estamos em Cormyr, não?
– Sim, Limiekki. Conhece bem as árvores. É a Floresta do Rei, para ser mais precisa. É aqui que nos refugiamos!
– Ei! – interrompeu Baruk, verificando o seu cinturão – Meu machado sumiu! Sua bruxa! Devolva este machado ou vou esquecer que é uma mulher e mostrar-lhe do que um anão é capaz de fazer com as mãos nuas.
– Hadryllis também desapareceu! – notou Magnus a ausência de sua espada sagrada – Por Helm! Isto é uma armadilha!
– Acalmem-se… É um efeito da magia Canal do Tempo. Armas e outros artefatos imbuídos de magia não podem ser transportados de uma era para outra. Eles estão retidos no limbo e serão seus quando retornarem à sua época de origem. Em nosso acampamento serão providenciadas armas para cada um de vocês, ainda que sejam bem mais modestas do que as possuíam.
– Que ótimo! – ironizou Arthos, verificando em seu cinto a bainha vazia de sua Lâmina das Rosas – E agora? Para onde vamos?
– Para o nosso esconderijo. Não é muito distante e, com Selûne[1] cheia e alta no céu, em pouco tempo chegaremos ao nosso destino.
– Você falou em esconderijo? De quem se escondem? – quis saber Mikhail
A resposta à pergunta do elfo de cabelos dourados foi inesperada, porém conclusiva. Uma seta assobiou, passando a poucos centímetros de sua face, indo fincar-se no tronco de um pinheiro. Outras se seguiram.
– O Zhentarim nos achou! Protejam-se! – bradou Marlana.
– Maldição… logo agora que estou sem meu machado! – praguejou Baruk, procurando um lugar para se esconder.
Um grande tronco caído foi a cobertura encontrada pela Comitiva. Bingo e Limiekki retiraram das costas seus arcos e setas, enquanto procuravam pelos inimigos. Os demais, a maioria privado das armas, somente aguardavam. Não demorou, até que surgissem os primeiros inimigos que corriam, com espadas nas mãos, na direção em que estavam. Trajavam cotas de malha e capas de cor clara que esvoaçavam à medida que avançavam e gritavam.
Bingo acertou um deles e Limiekki, outro. Mas havia agora uma dezena de inimigos com espadas em riste, indo na direção do grande tronco-trincheira. Em breve o combate não seria mais à distância. Foi a vez de Kariel deixar a proteção. O mago gesticulou e pronunciou palavras na misteriosa língua dos arcanos. Em segundos, uma luminosa rama elétrica partiu de sua mão direita, iluminando a noite e indo em direção a um dos soldados, e dele pulou para outro e do outro para o mais próximo, e assim por diante, até que oito estavam caídos ao solo esfumaçando e exalando um desagradável odor de queimado. Dois restantes que corriam impressionaram-se e, ao verem-se sozinhos, resolveram retornar em recuo. Porém foram também abatidos, desta vez por várias flechas, vindas da escuridão, na direção oposta ao refúgio da Comitiva. Um silêncio de poucos minutos se seguiu e após ele, um pio de coruja. A silhueta de um trio de homens deixou as sombras e o luar revelou que não usavam uniformes e todos portavam arcos longos presos as costas.
Bingo e Limiekki ainda seguravam flechas nas cordas retesadas de seus arcos, apontados para os recém-chegados, quando a maga que os acompanhava fez um gesto, pedindo que baixassem a guarda. A mulher de longos cabelos negros acenou para o que vinha à frente, em passos lentos, olhando para os cadáveres fumegantes.
– É Dezor! É um dos nossos!
– Marlana! – exclamou o seu companheiro. Era barbudo e parecia jovem. Usava roupas leves em couro e uma armadura de cota de talas. – Uau! Foi você quem fez isto?
– A Corrente de Relâmpagos é uma magia de Sexto Círculo, Dezor… meu aprendizado só me levou ao Quarto! O autor foi Kariel. Dezor, Kilen e Roc; estes são Kariel, Arthos, Baruk, Magnus, Bingo e Limiekki.
– A Comitiva da Fé! – exclamou o homem – Você conseguiu! Ha! Espírito ficará contente! Comitiva… é um prazer e um orgulho! Jamais pensei encontrar vocês!
Dezor, efusivo, adiantou-se, abraçou e cumprimentou cada um dos aventureiros, que retribuíram desajeitadamente. Magnus indagou o homem recém-chegado.
– O que agentes do Zhentarim fazem em Cormyr?
– Estávamos rastreando este grupo. Eles procuravam por nós. É uma longa história, mas prefiro que Espírito lhe conte, se não se importar. Ele vai falar melhor do que eu poderia. Mas… Ha! Vamos sair daqui! Sigam-me!
O arqueiro foi à dianteira. Vez em quando olhava para as estrelas e para uma árvore ou outra. Depois de alguns minutos, o bosque esparso deu lugar a uma vegetação mais densa e, aqui e ali, surgiam velhos blocos de pedra e vestígios de construções antigas, tomadas por trepadeiras. Moveram-se entre os obstáculos até que avistaram um baixio gramado, com duas dúzias de tendas armadas. Cerca de quarenta pessoas podiam ser avistadas no lugar, a maioria em torno de pequenas fogueiras, comendo, bebendo e conversando. À medida que desciam uma trilha íngreme, podiam distinguir homens e mulheres com roupas simples, e algumas poucas crianças. Viram também um pequenino e três meio-elfos entre eles. Todos olhavam aqueles recém-chegados com grande curiosidade.
Dezor e Marlana moveram-se pelo acampamento e pararam frente a uma tenda verde escura.
– Por favor, aguardem aqui! Chamarei Espírito e poderemos conversar! – disse a mulher.
Poucos minutos depois, a maga retornou e com ela um jovem meio-elfo, alto, de compridos cabelos negros e porte atlético. Vinha com um sorriso e um evidente brilho no olhar. Dois outros saíram da tenda após ele: um pequenino sardento e de cabelos ruivos, que levou as mãos à boca e arregalou os olhos assim que viu a Comitiva e uma elfa, que trajava um corselete de couro sobre um velho vestido verde ornado com flores e folhas prateadas costurados ao tecido e uma tiara de ouro prendendo o cabelo loiro.
– Meus tios! Meu pai! Por Mystra! Não sabem como estou feliz em vê-los! Sou Zender! – disse, para depois avançar e dar um abraço em Kariel, que correspondeu, ainda que um tanto vacilante. – E estes são Fibin e Vaera – apresentou os companheiros, que fizeram uma rápida saudação. – Sei que estão confusos e devem ter muitas dúvidas. Proverei todos de todas as informações que lhes puder oferecer. Porém, se desejarem descansar ou comer algo antes, posso providenciar alguma…
– Nós estávamos comendo em uma festa há uma hora, moço! – interrompeu Baruk – No momento, estou com mais fome de respostas do que de comida!
– Está certo, Baruk, mas será uma história bastante longa! Venham comigo, por favor!
Zender conduziu a Comitiva e os demais para sentarem-se em alguns velhos tapetes, dispostos em torno de uma fogueira, que esquentava a noite fria, poucos metros além da tenda verde musgo. Após acomodarem-se, o filho de Kariel iniciou.
– Em 1.374, do Cômputo dos Vales[2], um ano depois da época em que estavam, grandes mudanças aconteceram nesta região. Fzoul Chembryl, tirano de Forte Zhentil, declarou público o Zhentarim, a Rede Negra, que até então era uma organização semi-secreta, dedicada a organizar contrabando, crimes, espionagem e outras atividades ilegais. As rendas dos esquemas do Zhentarim fluíram para Forte Zhentil e foram direcionadas para preparar o exército zentilar. Com o fortalecimento do poder militar de Fzoul, o medo começou a crescer nos Vales. Nossos aliados, comandados pelos Harpistas, começaram a se movimentar para fazer frente a uma possível agressão. No entanto, Fzoul tinha um trunfo secreto. Espiões, infiltrados reinos adentro, utilizaram uma arma, um poderoso artefato mágico desconhecido, e aprisionaram, quase que simultaneamente, em um ataque orquestrado, a maioria das grandes e poderosas personalidades que consideravam potenciais inimigos. Mesmo Elminster, Storm, Caladnei e outros desapareceram. Alguns de meus amigos e mesmo o senhor, meu pai, ou a sua versão naquela época, tiveram este destino. – Zender olhou tristemente para Kariel e após uma pequena pausa continuou. – Em 1.375, sem aventureiros poderosos ou grandes arcanos para enfrentar, Fzoul invadiu os Vales. Apesar de resistir por algum tempo em suas muralhas, o Vale das Sombras caiu e, em questão de poucos meses, a bandeira do Cetro Tirano tremulava em todos os castelos, do Vale da Adaga até o Vale das Brumas. No mesmo ano, Cormyr, enfraquecida pelo conflito contra Vorik Aris, foi também invadida por Forte Zhentil, agora com o auxílio da aliada Sembia. Durante esta guerra, antes que algum dos lados declarasse vitória, a Regente de Aço de Cormyr, Alusair Obaskyr, e o seu sobrinho, o bebê rei Azoun V, desapareceram e foram dados como mortos em uma emboscada à Comitiva Real. Mesmo com a ameaça Zhentarim pairando sobre suas cabeças, a nobreza cormyriana iniciou um conflito interno, dividindo-se no apoio a dois bastardos de Azoun IV, que reivindicaram o trono vago. Saiu-se vencedor Ondryn Espada de Trovão, dizem que a custa de muita traição e vilania. A mágica Espada Obaskyr o confirmou como verdadeiro descendente consanguíneo de Azoun IV e ele foi aclamado como Azoun VI. O novo rei realizou um humilhante acordo de paz e cooperação com Forte Zhentil, que deixava Cormyr subordinada às leis de Forte Zhentil, e começou a eliminar e perseguir todos os seus adversários, revelando sua face tirânica. Boa parte dos Dragões Púrpuras, a outrora honrada guarda real, foi conduzida às masmorras, e outra parte obrigada a servir, para manter seus familiares vivos, subordinada a militares imorais e mesmo monstros oriundos de Forte Zhentil, ostentando agora nome de Dragões Negros. Infelizmente, meus amigos, esta é a história de como Cormyr, reino reconhecido como exemplo de justiça e ordem, transformou-se em um lugar violento e opressor.
– É uma história triste, Zender! – Arthos lamentou. – E vocês? São uma espécie de movimento de resistência?
– Com boa vontade, podemos nos considerar uma resistência. Contamos pouco mais de sessenta humanos, elfos e meio-elfos. Chamam-nos de os Últimos da Floresta. Realizamos pequenas ações de espionagem, roubo de cargas, liberação de prisioneiros, e mesmo assassinatos de oficiais Zhentarim, quando pudemos. Porém, isto não é nosso ideal. Queremos livrar o Oeste da Sombra de Fzoul Chembryl e do Zhentarim.
– Deve saber que sou um membro dos Harpistas. O que houve a eles? Não podem ajudar a causa de vocês? – quis saber Kariel.
– Os Harpistas… eles já não existem mais ou, se existem, estão ocultos. Suas figuras principais desapareceram no Expurgo de Fzoul e os agentes foram caçados pelos espiões e aliados do Zhentarim – respondeu o meio-elfo.
– Zender – iniciou Mikhail. – Perdoe-me por minha curiosidade inoportuna, mas quero saber como viemos parar aqui. Estudei nos livros de minha fé, com o mestre Terrapin Triworm, sobre os antigos encantamentos arcanos e recordo-me que a magia Canal do Tempo não pode mais ser conjurada há milênios. Mystra baniu a criação de efeitos de viagem entre épocas, por conta das conseqüências imprevisíveis para o fluxo temporal. Em sua carta à Kariel, escreveu que a magia era oriunda de pergaminhos de Netheril. Como os conseguiu?
– Um mensageiro, vindo secretamente da torre do Cajado Negro, em Águas Profundas, nos entregou os dois últimos pergaminhos desta magia ancestral de Netheril, do acervo do poderoso mago Khelben Arunsun, junto com algumas instruções. Uma carta, escrita pelo próprio Khelben, dizia, entre outras coisas, que ela talvez pudesse trazer campeões do passado para nos ajudar, mas, para isto acontecer, eu deveria saber exatamente onde eles estariam e realizar a magia na passagem do ano, quando as forças do tempo estão mais ativas. Lembrei-me do Festival da Muralha e que estavam todos vocês reunidos. Decidi enviar Marlana para chamá-los e assim estão aqui, porém isto não significa que estão presos. O outro pergaminho poderá levá-los novamente a época de vocês, se desejarem. Vocês vieram de maneira apressada e sem o conhecimento necessário. É justo perguntar-lhes agora se desejam ou não permanecer e nos auxiliar. Temos planos e missões, mas eles envolvem riscos, até mesmo para a Comitiva da Fé.
Kariel foi o primeiro a falar, com sua voz pausada e suave, que raramente se elevava.
– Filho… vocês confiaram à nós o raro recurso que tinham e esperamos retribuir e ajudá-los a reparar este terrível cenário que nos descreveu. Conheço meus companheiros e eles não se furtarão a contribuir como puderem! Não posso falar por Baruk, pois ele ingressou recentemente em nosso meio e não sei se possui outros planos.
– Bah! – gritou o anão de barbas negras longas. – Um anão não foge das demandas! Ofereceria meu machado em serviço, mas aquela magia tirou ele de mim!
Zender e seus companheiros sorriram. O meio-elfo disse em seguida.
– Não esperava diferente! Obrigado, meus amigos! Amanhã nos reuniremos para conversar sobre a missão que planejamos, mas por hoje, descansem. Temos javali assado e vinho. Estamos comemorando os primeiros momentos do ano de 1.403, o Ano da Harpa Escondida! Esperamos que este, finalmente, seja o ano de nossa libertação!
Contínua no Capítulo 3 – O Monte da Adaga.
[1] Nome da Lua do planeta Toril e também da Deusa da luz, da lua, estrelas, navegação e dos andarilhos.
[2] Cômputo dos Vales – Calendário mais comum, cujo ano zero coincide com o erguimento da Pedra do Acordo em Cormanthor, marcando o fim das hostilidades entre elfos e humanos na região.
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