Capítulo 10 – O Julgamento

Por Ricardo Costa
Imagem de Destaque, “Adventurers Caravan” por Jon Pintar (disponível em https://www.artstation.com/artwork/dmXaX)

O barulho pesado da chuva e dos eventuais trovões havia cessado, enfim. No pátio, próximo aos estábulos, ao lado da estalagem A Face do Velho, estava estacionada a carroça de mercador dos rebeldes, cujo conteúdo, valioso e secreto, estava sendo guardado: dentro de sua lona, acomodados junto a muitos barris e caixas repletos de vinho e de moedas, estavam a elfa de cabelos e olhos castanhos claros chamada Vaera e o pequenino ruivo e sardento de nome Fibin. Já era noite alta e, em breve, seria um novo dia, mas os dois ainda estavam acordados. A moça, de voz suave como veludo, se dirigiu ao amigo que, de tão entretido, não retirava os olhos de um livrinho de capa de couro avermelhado, que lia na iluminação de uma vela a derreter sobre o fundo de uma caneca.

– Porque não vai dormir, Fibin? Não tem sono?

– Você não vai acreditar, Vaera… consegui, em uma feira em Suzail, um livro com uma aventura da Comitiva da Fé! Estava guardando para ler durante a missão!

– Interessante, Fibin! E o que conta nele?

– É uma história de piratas e de um tesouro cormyriano roubado no Mar da Lua… foi escrito por um gnomo de nome Gilbert. É curioso ler sobre nossos companheiros de viagem. Eles são incríveis… sabia que Arthos não é…

– Shh! – a elfa sinalizou para aquietar o pequenino. De pronto, Fibin calou-se, guardou o livro e sacou a espada curta que levava.

Os ouvidos apurados da raça dos elfos alertaram Vaera da aproximação de alguém, que pisava contra as poças de água na terra lamacenta. Ela soprou a vela e lembrou-se de uma conjuração protetiva, mas, pouco antes de realizar gestos arcanos, ouviu uma voz familiar, que acalmou seus ânimos.

– Vaera? Fibin?

– Magnus? – retrucou a elfa. 

O encharcado e jovem paladino de Helm então surgiu com sua alta silhueta ao fundo da carroça. Tinha uma expressão séria e determinada. Vaera então lhe perguntou, pensando em seu amigo rebelde.

– Acharam o Pequeno Kelta? Ele está bem?

– E o tal vampiro? Acabaram com ele? – quis saber Fibin, que deixou as sombras e empoleirou-se na saída da carroça para ouvir as respostas do guerreiro da Comitiva da Fé.

– O companheiro de vocês está machucado, mas nada que não possamos curar. O vampiro foi destruído, mas infelizmente a noiva do ferreiro pereceu. Estamos nos reunindo no celeiro. Capturamos três oficiais dos Zhentarim e, em nome de Helm, eles serão julgados pelos seus crimes. Se quiserem, podem testemunhar o julgamento.

– Não irei. Não é de meu caminho participar de tribunais e promover a morte de inimigos desarmados, ainda que possa ser justo fazê-lo. Deixo para vocês decidir tal questão. Ficarei aqui, na missão de proteger esta carroça. Aqui estarei melhor.

– Se não se importa, ficarei aqui também! – avisou Fibin, ansiosamente apalpando o livrinho que guardava no bolso.

– Pois bem! Deveremos partir em breve!  Estejam preparados! – falou Magnus, em despedida.

***

Pouco menos de uma hora depois, o estábulo estava iluminado por tochas e, em três das colunas de madeira que sustentavam o teto, estavam amarrados por cordas e amordaçados, os oficiais Zhentarim capturados. O Pequeno Kelta e Magnus estavam de pé diante frente deles e sentados à sua volta estavam os demais integrantes da Comitiva da Fé, a exceção de Mikhail. O clérigo de Mystra estava na companhia do desafortunado Verner, e juntos iriam preparar uma cerimônia fúnebre para a sua falecida Mirina. Um pequeno grupo de moradores de Tyrluk, uns vinte ou trinta, sentava-se em cadeiras ou em montes de feno. Eram pessoas que ainda estavam na estalagem e que foram convocadas como testemunhas. Ao saber da possibilidade de justiça, bateram á porta das casas de amigos e familiares que dormiam naquela hora da noite, e que, mesmo assim,  levantaram para assistir seus algozes enfrentarem, finalmente, alguma consequência sobre seus atos. Magnus tomou a palavra, iniciando a audiência.

– Senhores. Estes agentes dos Zhentarim foram capturados. Seus pares no forte foram mortos em combate, mas estes estão prontos para receberem um julgamento. Não sou representante de Tyr, Deus da Justiça, mas em sua ausência e em nome de Helm, o Deus Guardião, farei levar a merecida retribuição a estes homens. Pedi para chamá-los aqui para que digam se algo do conhecimento de vocês recai sobre estes réus. 

Houve um silêncio e muitos se entreolharam, mas quando o medo constante molda os comportamentos, as manifestações de vontade tornam-se vacilantes. Alguns poucos então cochicharam, até que uma mulher de meia idade, ao fundo, levantou-se e falou em voz alta.

– Estes homens mataram meu marido! O único crime que ele cometeu foi não ter dinheiro para pagar os impostos para os nortistas do Forte Zhentil. Eu o amava e eles o tiraram de mim!

Um homem levantou, encorajado pelo exemplo da mulher.

– Eles incendiaram a capela de Tyr e disseram-nos que o único deus a ser venerado deveria ser Bane! Mataram o padre Lamertus na porta da igreja.

Um rapaz adolescente seguiu o homem

– Roubaram todos os meus porcos e deixaram minha família a passar fome. Eles nos empurram e nos agridem se não saudarmos à Fzoul Chembryl!

Um a um, os moradores começaram a contar suas histórias de tragédia e violência. Até que Magnus interferiu.

– Senhores… os crimes foram apontados: assassinato, violência, roubo, intolerância e desrespeito às pessoas e aos deuses. A sentença é clara e será dada com Hadryllis – disse desembainhando sua belíssima e mágica espada longa – Ela hoje levará Justiça à Tyrluk. Porém antes, em respeito às liturgias de Tyr, os acusados terão direito às suas últimas palavras e poderão se defender.

O paladino retirou a mordaça de um dos oficiais capturados no pátio. O homem ruivo e barbado o fitou com olhos de ferro e, em vez de falar, cuspiu na face de Magnus, que limpou-se com a manopla e, em silêncio, enterrou com força sua lâmina sagrada no coração do prisioneiro. Ele tossia, enquanto o sangue escorria de seu peito, formando uma poça no chão e depois silenciou.

O segundo a ser desamordaçado foi o capitão daquela guarnição, o mesmo que torturava o Pequeno Kelta em sua cela. O homem loiro e robusto decidiu usar seu direto à palavra. Tinha um estranho sorriso na face.

– Vocês todos vão pagar! Lorde Fzoul vai cobrar um preço alto por esta rebelião e para cada um de nós que morrer, dez de vocês morrerão. E estes rebeldes patéticos da Floresta do Rei serão esmagados. Bane é o Deus da Força e quem se coloca no seu caminho não terá destino melhor do que a morte. Vocês me matarão, mas Bane me recompensará no além vida!

O Pequeno Kelta, meio-elfo extremamente robusto e ainda mais destemperado, mesmo ferido, avançou sobre o homem com uma adaga e bradou! – Então diga ao desgraçado do Bane que foi o Pequeno Kelta que o matou! – Em seguida, abriu em um corte o pescoço do Zhentarim, que fez jorrar sangue no chão do estábulo. 

Magnus pensou em repreender o companheiro, mas diante de tudo que ele havia passado e da inevitabilidade do resultado final de sua ação, desistiu de reprimenda e continuou a sessão. Então tirou a mordaça do último. O homem, mesmo com as chocantes mortes dos seus compatriotas, parecia resignado e falou pausadamente.

– Não sou seguidor de Bane e nem sou um Zhentarim de fato. Sou sim um zhentilar e, por ter nascido em Forte Zhentil, fui obrigado a servir, caso contrário seria morto e minha família pagaria um preço. Nem todos os zhentilares se orgulham destas atrocidades e lamento fazer parte disso. Se me deixarem viver, posso dar-lhes algumas informações sobre o que eu sei dos próximos movimentos do exército. Se acharem que isto não é suficiente, peço-lhe que me atendam a última vontade de escrever uma carta para minha esposa e filha em despedida! 

– Balela! – O Pequeno Kelta gritou, ainda com sua adaga pingando escarlate nas mãos! – vocês todos não passam de um monte de mentirosos!

Magnus, desta vez, segurou o ímpeto do rebelde, firmando a mão pesada no ombro direito do meio elfo.

– Acalme-se… se o homem está disposto a colaborar e não se declara Zhentarim ou banita, podemos aproveitar algo. Leve-o como prisioneiro para os Últimos da Floresta. Zender vai saber o que fazer com ele.

– Está bem! – concordou contrariado o Pequeno Kelta – …mas se ele folgar comigo, o mando para o Abismo.

Magnus então se dirigiu para os presentes e, encerrando o julgamento, disse:

– A justiça foi realizada, mas juro a vocês em nome de Helm que eu e meus companheiros não iremos nos limitar a Tyrluk. Hoje foi o início, mas os Zhentarim e Fzoul Chembryl vão pagar por toda a dor e violência que disseminaram! Agradeço aos que aqui estiveram!

As palavras do paladino levaram esperança aos corações dos sofridos moradores de Tyrluk. Ainda que esperança, para eles, não significava muito além de uma promessa distante de algo que lhes parecia impossível de acontecer. 

***

Funeral para Mirina

Do lado de fora, no vento e no frio daquele final de noite de inverno, Mikhail e Verner estavam na frente das ruínas da igreja incendiada de Tyr. Diante deles, iluminado por uma lanterna e repousado em uma cama de madeira e lenha jazia o corpo sem vida da bela Mirina, envolto em um lençol branco. 

O clérigo de Mystra havia acabado de ler em seu livro sagrado, as orações fúnebres de sua fé, desejando repouso a alma da mulher e que ela fosse recebida nos salões de Tyr, sua divindade de crença. Verner olhava, aprisionando a dor e ódio que naquele momento consumiam sua alma, esforçando-se para manter-se sólido, apesar de todo sofrimento que sentia.

– Querida Mirina… sentirei falta de seu sorriso, de seu companheirismo… queria poder enterrá-la junto de seus pais.

– Verner… sinto muito, mas é a única maneira segura! – falou Mikhail – O Livro dos Mortos Vivos de Van Dorn descreve que aqueles que sofrem a morte por um vampiro, podem levantar de suas sepulturas como novas criaturas mortas vivas, como vimos no covil de Kyrius. 

Verner sabia que o elfo de cabelos dourados estava certo. Derramou sobre o corpo um odre de óleo e em seguida ateou-lhe fogo, com a centelha da lanterna. O fogo prosperou, iluminou e aqueceu os dois. As lágrimas de Verner venceram seu controle e desceram sobre sua face mais uma vez, e ele recebeu um abraço do aventureiro da Comitiva em consolo.

***

A Partida

2 de Martelo, ano dos Amigos Caídos (1.399 CV)

Já era novo dia, mas antes do amanhecer, a Comitiva da Fé estava novamente reunida, próximo à carroça, desta vez, pronta para partir. O Pequeno Kelta e seus três companheiros salvos do covil do vampiro estavam refeitos dos ferimentos, graças à magia divina de Mikhail. O ferreiro Verner estava com eles, assim como o prisioneiro Zhentarim, que tinha suas mãos atadas na frente por uma corda. Vaera repassava ao companheiro de rebelião sua missão.

– Kelta… Zender pediu para que retornasse à Floresta do Rei o quanto antes e que, desta vez, obedecesse ao seu comando. Não poderemos mandar ninguém resgatá-lo novamente de uma cela dos Zhentarim. E veja se entrega o prisioneiro intacto!

– Bah! – resmungou o meio elfo – Vou atender… não quero dar mais trabalho, mas é que não sei ficar parado na Floresta… sabe… a espada tem sede de sangue de Zhentarim, mas prometo me comportar desta vez!

– Você parece muito com o seu pai de sangue, Pequeno Kelta… Faergal era louco por batalhas. Ficava à vontade no meio dos inimigos, girando aquelas espadas gêmeas… o chamávamos de “O Moinho da Tempestade Selvagem”! – comentou Arthos, lembrando do amigo, morto em batalha, em algum lugar do Abismo.

Verner interferiu na conversa. Tinha uma mochila nas costas.

– Gostaria de ir aos rebeldes. Talvez haja lugar para um ferreiro com habilidade por lá. Aqui nada mais tenho que me prenda. Com eles, eu terei um propósito.

– Ok, garoto! Não me dando trabalho, tudo bem! – assentiu o Pequeno Kelta, para em seguida, se dirigir aos membros da Comitiva – Não sei que bruxaria trouxe vocês de volta do passado, meus tios, mas foi muito bom revê-los. Que Tymora acompanhe todos os seus passos!   

O musculoso meio elfo, então, deu um inesperado abraço nos aventureiros e acompanhou um a um subirem na carroça e nos cavalos.

– Adeus, Comitiva da Fé! Boa sorte! – bradou por fim, o Pequeno Kelta, vendo os amigos desaparecerem na escuridão da madrugada, rumo à fronteira leste, para atravessar a cordilheira dos Chifres da Tempestade.


Continua no Capítulo 11 – O Entreposto

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