Sobre os 
                Romances de RPG
              Acredito 
                que não existe nada mais fascinante para um jogador de 
                RPG do que descobrir o que há por trás de uma ficha 
                de personagem. Muitos jogadores, assim como eu, vêem o jogo 
                como algo muito maior do que uma série de combates e distribuição 
                de XP: eles vêem o jogo como a construção 
                de uma história e de seus personagens. E é para 
                isso que servem os romances, para ilustrar as partes que não 
                jogamos, para nos mostrar como certas coisas funcionam na prática, 
                para dar uma dimensão maior ao que está no tabuleiro. 
                Muitos desses romances surgiram de sessões de jogo, muitos 
                personagens foram desenvolvidos a partir de uma simples ficha 
                com estatísticas. Muitas pessoas que acham as fichas nos 
                livros de cenário incompatíveis com a fama e os 
                feitos dos personagens não entendem que o tempo de uma 
                sessão de jogo e o tempo de evolução dos 
                personagens não pode ser comparado aos romances.
                
                Em termos de jogo, um personagem pode levar muito pouco tempo 
                para chegar ao nível 20, mas devemos considerar que o jogo, 
                por mais que tentemos, não envolve toda a profundidade 
                de um personagem, suas experiências completas, seus sentimentos, 
                seu histórico. E essas coisas só são possíveis 
                por meio de romances, onde um autor tem a possibilidade de explorar 
                todas essas nuances. Portanto, jamais devemos levar em consideração 
                as estatísticas de um personagem quando lemos um romance, 
                e sempre devemos ter em mente que, nas páginas de um livro 
                e na nossa imaginação, tudo (ou quase tudo) é 
                possível :).
              A Série Trilogia 
                do Avatar
              
                 
                  | Ilustração 
                      por Ned Dameron
  Kelemvor, Cyric e Adon caminham por Arabel.
 | 
              
              De tantos fatos importantes 
                na história dos Reinos Esquecidos, certamente 
                um dos mais (senão o mais) conhecidos entre os fãs 
                do cenário, foi o Tempo das Perturbações. 
                Transformado em aventura jogável na 2ª edição, 
                para que todos os jogadores pudessem sentir na pele os efeitos 
                desse evento, o Tempo das Perturbações, assim como 
                outros eventos importantes do reino, foi romanceado na série 
                intitulada The Avatar Series (Trilogia do Avatar). Embora 
                muitas pessoas pensem ser uma trilogia, The Avatar Series 
                é formada por cinco livros: Shadowdale, Tantras, Waterdeep, 
                Prince of Lies e Crucible: The Trial of Cyric, the Mad 
                (sendo esses dois últimos exclusivos sobre Cyric).
                
                Shadowdale (Vale das Sombras), o primeiro romance da 
                série, tem por objetivo nos apresentar essa nova realidade 
                assim como os personagens que nos acompanharão pelo restante 
                dos livros, praticamente divididos em duas vertentes: deuses e 
                mortais. E é exatamente nessas duas vertentes que falarei 
                sobre esse romance indispensável.
              Deuses
              O livro começa com 
                um prólogo bastante interessante, onde Lorde Ao despeja 
                toda a sua fúria sobre os deuses, ao descobrir que as Tábuas 
                do Destino, objetos que contém as funções 
                de cada um dos deuses de Faerûn, foram roubadas, fazendo 
                assim sua primeira grande aparição nos reinos. Até 
                então, o deus dos deuses era totalmente desconhecido pelos 
                mortais e é obrigado a se mostrar para resolver essa questão 
                tão importante. Lorde Ao demanda que os deuses devolvam 
                as Tábuas, porém, o roubo delas nada mais 
                é do que a gota d’água para uma longa insatisfação 
                de Ao com o comportamento dos deuses, mostrando que eles estavam 
                mais preocupados com seus próprios problemas do que com 
                seus adoradores, como vemos no trecho a seguir: 
              “Não mais 
                vocês ignorarão o propósito para o qual receberam 
                a vida! Vocês conhecerão suas transgressões 
                e lembrarão delas o tempo todo. Vocês pecaram contra 
                seu soberano e serão punidos (...) vocês não 
                vêem nada além da salvação de suas 
                próprias peles (...) Covardes. O efeito do roubo das Tábuas 
                foi a afronta final. Vocês as devolverão para mim. 
                Mas antes, vocês pagarão o preço por um milênio 
                de desapontamento.” *
              * 
                Shadowdale; Ciencin, Scott. Págs. 4 e 5.
                
                Essas passagens nos mostram alguns pontos importantes. Primeiro, 
                a humanização dos deuses de Faerûn, seres 
                capazes de cometer erros, envolvidos em disputas pequenas e pessoais, 
                da mesma maneira que os deuses da mitologia grega faziam. Bane 
                se mostra como alguém exclusivamente preocupado em adquirir 
                mais poder. Mystra aparece como uma mulher fútil, cuja 
                grande preocupação parece ser a perda do conforto 
                de sua casa, e essa é a mesma reação da maioria 
                dos deuses. Outro ponto importante que se observa nas palavras 
                de Ao, é que esses mesmos deuses que carregam aspectos 
                dos quais devem se responsabilizar, pouco se importam em realmente 
                cumprir suas tarefas, deixando seus adoradores à mercê 
                da sorte. Por causa disso, podemos afirmar que o Tempo das Perturbações 
                foi um evento que dividiu o panteão de Faerûn em 
                dois momentos, fazendo com que depois dele os deuses tivessem 
                que se preocupar realmente com aqueles que os adoravam, a ponto 
                de sua força e poder serem determinados pelo número 
                de fiéis. Helm é o único deus a não 
                sofrer qualquer punição, por uma razão muito 
                importante: ele seria o guardião das Escadas Celestiais, 
                únicos acessos ao reino dos deuses, e assim impedir que 
                eles tentassem voltar sem cumprir a punição determinada 
                por Ao. E assim os deuses são enviados para Faerûn, 
                a fim de aprenderem um pouco mais sobre humildade e respeito. 
                Mas é claro que nem todos os deuses serão capazes 
                de encarar o castigo de Ao com o coração aberto. 
                Um deles é Bane. O deus da tirania merece destaque à 
                parte, tanto quanto por suas idéias brilhantes quanto por 
                sua participação nos eventos. Ele é o grande 
                vilão do livro e assume esse papel com orgulho, com tudo 
                o que um vilão tem direito: ambição fora 
                de controle, total falta de noção e limites, prepotência 
                e autoconfiança exagerada, como vemos no trecho a seguir: 
              
              “Roubamos as Tábuas, 
                pois acreditávamos que Ao retirava algum poder delas, e 
                sem as Tábuas Ao estaria menos inclinado a interferir nos 
                nossos problemas (...) Talvez ele não mais tenha força. 
                Talvez seja por isso que nosso senhor nos exilou dos planos (...) 
                Ao temia que os deuses pudessem se unir e se levantassem em revolta.” 
                * 
              * 
                Shadowdale; Ciencin, Scott. Pág 70.
                
                Por prepotência ou quem sabe até mesmo inocência, 
                Bane e Myrkul se convencem de que Ao está enfraquecido, 
                pensamento esse reforçado quando Helm exige que as Tábuas 
                sejam devolvidas, logo após seu encontro com Mystra no 
                castelo Kilgrave (Bane prende a deusa logo no início do 
                livro, pensando em usar seu poder ou apoio para conseguir seu 
                objetivo. A deusa descobre que Bane e Myrkul são os autores 
                do roubo e decide entregar os culpados para Helm e adquirir o 
                direito de voltar para seu plano, mas acaba lutando contra ele 
                e é “destruída”). Assim, acreditando 
                piamente que poderia obter o controle absoluto de toda Faerûn 
                e derrotar Ao, Bane organiza os exércitos Zhentarim e dirige-se 
                ao Vale das Sombras, para a outra Escada Celestial localizada 
                no templo de Lathander. Essa investida será o ponto alto 
                do livro, culminado em um confronto de tirar o fôlego, onde 
                a deusa da magia faz um último sacrifício para derrotar 
                Bane. Mas seu esforço não é suficiente para 
                acabar com ele e o deus da tirania volta com força total 
                no segundo livro, com mais aliados.
              
                 
                  | Ilustração 
                      por Ned Dameron
  Mystra confronta Helm
 
 | 
              
               Algumas aparições 
                importantes:
                
                • Tyr: Protesta com Ao 
                sobre sua punição e é cegado.
                • Tymora: Aparece em Arabel 
                e recebe moedas para que os fiéis possam dar uma olhada 
                nela.
                • Talos: Também 
                protesta contra a punição de Ao.
                • Outros deuses citados: 
                Sune, Ilmater (o único que reage com alegria à punição 
                de Ao, por motivos óbvios) e Llira.
              Mortais
               Os quatro personagens principais 
                do livro envolvem-se nos eventos por puro acaso: eles estavam 
                no lugar certo e na hora certa. São eles Meia-noite, Kelemvor, 
                Cyric e Adon. Vamos analisar cada um deles a seguir:
                
              
              
                 
                  |  
                       Adon
 | 
              
              • 
                Adon: 
              “Um rosto belo 
                junto a um corpo saudável e aproveitável (...) e 
                com o ego do tamanho do meu reino!” *
              * 
                Shadowdale; Ciencin, Scott. Pág 36.
                
                É isso que diz Myrmeen Lhal, senhora de Arabel, dando-nos 
                talvez a melhor descrição do clérigo que 
                encontramos no romance. E por grande parte da história, 
                Adon é apenas isso, um homem fútil, preocupado demais 
                com sua aparência, cujo grande objetivo é encontrar 
                sua deusa, Sune, e receber dela a recompensa por toda a sua dedicação. 
                Mas quando ele é atingido no rosto e adquire uma cicatriz 
                que o marca para sempre, Adon tem sua fé abalada, acreditando 
                que sua deusa decidiu puni-lo por algum motivo. Esse acontecimento 
                será responsável pela mudança de sua personalidade 
                no final desse livro e decorrer dos outros, tornando-o um homem 
                mais maduro e sério.
                
              
              
                 
                  |  
                       Cyric
 | 
              
              • 
                Cyric: O futuro deus das mentiras e intrigas 
                em Vale das Sombras ainda é um homem bom, tentando acreditar 
                nas pessoas, disposto a se redimir por seus erros. Mas em suas 
                costas há um grande peso, há as terríveis 
                experiências do seu passado, que tornam a sua transformação 
                ainda mais difícil:
              “A vida é 
                sofrimento. Eu aceitei isso. Mas não tenha pena de mim 
                só porque minha visão é mais clara que a 
                sua.” *
              * 
                Shadowdale; Ciencin, Scott. Pág 199.
                
                Essa é a opinião de Cyric, dividida com Meia-noite 
                em um dos momentos do livro. Mas quando Cyric percebe que um deus 
                pode morrer e guarda essa noção para si, percebe-se 
                o começo da grande transformação que ocorrerá 
                com ele nos próximos livros. Conforme eu lia, confesso 
                ter me apegado muito a esse personagem tão carismático, 
                e me senti muito frustrada ao pensar que ele se tornaria um grande 
                vilão no futuro. Dos quatro personagens, Cyric sem dúvidas 
                é o mais rico, com uma personalidade complexa e uma esperteza 
                capaz de vencer até mesmo o poder de alguns deuses.
                
              
              
                 
                  |  
                       Kelemvor
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              • Kelemvor: 
                O guerreiro líder do grupo é um homem determinado 
                e de bom coração, mas ao mesmo tempo atormentado 
                por uma maldição que faz com que ele pareça 
                um homem fútil e ambicioso. Mesmo quando Kelemvor deseja 
                ajudar ou fazer o que seu coração quer, a maldição 
                impõe que ele coloque um preço em suas ações, 
                e não faça nada que não seja em troca de 
                alguma recompensa, ou então ele se transforma em uma pantera. 
                É quase que imediato o envolvimento dele com Meia-noite, 
                e juntos eles são os responsáveis pelas poucas cenas 
                românticas do livro, como quando Meia-noite descobre sobre 
                a maldição e se oferece para recompensá-lo 
                de uma forma inusitada: 
              “Acharemos uma 
                forma de curar você (...) você virá comigo 
                para o Vale das Sombras?” pergunta Meia-noite. “Devo 
                saber o que você oferece”, ele responde. “Ofereço 
                meu amor.” *
                
                * Shadowdale; 
                Ciencin, Scott. Pág 225.
                
                Essa é a oferta final da maga para ele. E assim Kelemvor 
                acompanha Meia-noite, embora ele mesmo não se sinta compelido 
                a fazer qualquer coisa para ajudar os deuses.
                
              
              
                 
                  |  
                       Meia-noite
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              • Meia-noite: 
                Podemos dizer que Meia-noite divide com Bane a posição 
                de personagem principal. A maga, uma pessoa de muita fé 
                que não se dobra facilmente, mostra-se bastante diferente 
                do que se espera de uma mulher “medieval”, com modos 
                independentes e sem qualquer problema em quebrar tradições 
                (ela e Kelemvor dividem a mesma “cama” por algumas 
                vezes no decorrer do livro). Ela sem dúvidas é um 
                dos melhores exemplos para a definição de um personagem 
                caótico e bom. Quando Mystra a procura e pede a ela sua 
                ajuda na busca às Tábuas do Destino, para 
                que a deusa consiga acabar de uma vez com aquele castigo, Meia-noite 
                nem ao menos pensa ou considera seu pedido, comprometendo-se imediatamente 
                com Mystra, mesmo sem ter noção de como faria para 
                encontrar aqueles itens ou se aquilo seria ou não difícil. 
                Acredito que a determinação e a bondade dela sejam, 
                em grande parte, o motivo que leva os outros personagens a se 
                envolverem na missão. Ela é a única personagem 
                que se mantém a mesma nos três romances, sem qualquer 
                mudança em sua personalidade.
                
                Juntos, os quatro aventureiros que se tornam amigos, partem de 
                Arabel para salvar Mystra das mãos de Bane e depois seguem 
                para o Vale das Sombras, participando do confronto a fim de impedir 
                que Bane chegue à Escada Celestial em uma batalha de tirar 
                o fôlego, culminado em uma cena final ainda mais surpreendente, 
                que nos faz abrir o segundo volume da série imediatamente. 
                Mas eu não estragarei a surpresa, afinal, nunca se sabe 
                quando teremos acesso a esses romances em português :) .
              
                 
                  | Ilustração 
                      por Ned Dameron
  Mystra e Elminster lutam contra Bane
 
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               Outros mortais dignos 
                de nota:
                
                • Elminster: O mago mais famoso de Faerûn, 
                uma figura como sempre, tem uma participação vital 
                a partir da metade do romance, ajudando sua deusa na luta contra 
                Bane.
                • Semmemon: Aparece na batalha final do 
                livro.
                • Fzoul Chembryl: Também participa 
                da batalha, e é atingido por Cyric.
                • Storm Mão Argêntea: Surge 
                na parte final do livro para defender o Vale das Sombras.
              Shadowdale 
                cumpre a tarefa de introduzir a saga pela busca pelas Tábuas 
                do Destino de maneira muito objetiva. Ele nos apresenta o 
                cenário onde deuses caminham sobre a terra e nos prepara 
                para os momentos ainda mais surpreendentes nos livros seguintes. 
                O livro é centrado exclusivamente em contar esses eventos, 
                sem se prender a coisas menores como explicar a origem de alguns 
                personagens do mundo ou explorar o relacionamento de outros. É 
                um romance corrido mas ao mesmo tempo intrigante, com uma escrita 
                bastante simples e facilmente digerível. Vamos torcer para 
                que, com o passo inicial da tradução de alguns romances 
                para o português, a Trilogia do Avatar não 
                seja esquecido.
                
                