1.O Sucesso
                     Estamos 
                em 1890,  Conan Doyle já havia publicado duas novelas: 
                "Um Estudo em Vermelho" e "O Signo dos Quatro". 
                  Nestas duas estórias havia utilizado a mesma fórmula, 
                 um detetive habilidoso que tem suas aventuras narradas por 
                um médico com quem divide o aluguel.  Estas foram 
                as primeiras aparições de Sherlock e Watson.   
                Até este ponto,  segundo nos relata Doyle em "Memórias 
                e Aventuras",  seu detetive não chamara muita 
                atenção nem ninguém o citou como uma grande 
                criação.   Estava inclinado a abandoná-los 
                quando lhe ocorreu que poderia vender para a revista Strand um 
                tipo de estórias que ninguém havia imaginado antes. 
                 Aventuras seriadas (ver Parte I).   Escreveu três 
                contos em seu consultório vazio,  enquanto esperava 
                pelos clientes que nunca entravam;   mandou-os para a revista. 
                 O editor gostou dos textos,  e da idéia do escritor, 
                 de fazê-los independentes entre si.   Pediu mais, 
                  e foi assim que nasceram os doze primeiros contos de Holmes. 
                 Posteriormente foram reunidos e publicados na forma de livro 
                com o titulo "As Aventuras de Sherlock Holmes".  Mais 
                uma vez,  após terminar o decimo segundo conto,   
                Conan pensou em abandonar sua dupla para se dedicar a quimera 
                chamada literatura "séria", porém,  desta 
                vez não teve escolha;   sofrera uma pressão 
                intensa do público e dos editores,  de repente,  sem 
                que Doyle pudesse se dar conta,  havia se tornado o escritor 
                mais lido da Europa.
               
              2.Watson: 
              
                 
                  | 
 | 
              
                  Nota: 
                  antes de analisarmos o 
                próprio Sherlock,   creio 
                que seja oportuno voltarmos os olhos para o cronista Watson, 
                  para deste modo, criarmos uma ideia ampla e não 
                estereotipada sobre o Mestre dos Detetives.
                
                     Muito 
                possivelmente pode-se dar muitas voltas ao mundo enfileirando-se 
                todos os livros,   resenhas, 
                  estudos,  
                 etc.,   que 
                foram escritos sobre a personagem Sherlock Holmes. Preconceitos 
                literários pouco consistentes fizeram com que a obra policial 
                de Doyle fosse pouquíssimas vezes analisada seriamente; 
                  talvez por isto,   o 
                aspecto mais importante da saga Sherlockiana tenha sido contumazmente 
                negligenciado:   o doutor 
                Watson. De quem pouco se tem escrito. 
                  O homem que não apenas foi o cronista da 
                saga,   mas certamente seu 
                criador.
                
                     Watson 
                não era um mentiroso sem limites.  
                 Não é isto o que se está dizendo. 
                  Apenas conhecemos o mestre dos detetives através 
                dos olhos de um outro senhor.   
                Um homem pacato,   de vida 
                simples;   com elevado e 
                subjetivo senso de justiça. E partindo do pressuposto de 
                que cada sujeito enxerga a realidade a sua maneira particular, 
                  podemos depreender disto 
                que o que lemos na obra policial de Doyle não é 
                um relato strictu senso da realidade,  
                 mas a maneira como Watson a enxerga. 
                  É uma questão delicada, 
                  complexa para ser compreendida.  
                 Este pequeno trabalho demonstrará,  
                 com exemplos da própria saga, 
                  este argumento.
                
                     A primeira 
                crônica escrita por Watson intitula-se "Um Estudo em 
                Vermelho".   Sabemos 
                que seus relatos fizeram muito sucesso na Europa e contribuíram 
                sobremaneira para a fama do seu estimado amigo detetive.  
                 Assim, comecemos escutando (lendo) as palavras do 
                próprio Holmes, ao expressar sua opinião sobre estes 
                relatos.   Eis o que disse 
                Sherlock ao seu companheiro após ter lido "Um Estudo 
                em Vermelho":   "A 
                investigação é uma ciência positiva 
                e deve (...)   ser tratada 
                duma forma fria, sem emoção. 
                 Você (Watson) tentou dar-lhe uns ares românticos, 
                o que levou a ficar parecendo uma historia de amor (...)". 
                  Esta passagem encontra-se 
                nas primeiras paginas da novela "O Signo dos Quatro". 
                  Inúmeras vezes 
                Holmes condena a maneira fantasiosa pela qual o doutor focaliza 
                suas investigações. Para que não se torne 
                maçante, será citado apenas mais uma, 
                  e segundo parece,   a 
                mais importante. 
                
                     Foi 
                no pequeno conto "As Faias Cor de Cobre".  
                 Doyle inicia o texto com uma longa fala de Sherlock, 
                na qual,   entre outras 
                coisas, o detetive chama de fantasiosos os relatos descritos por 
                Watson. E ainda: " Você   
                (Watson)   talvez tenha 
                errado em se esforçar por colorir e avivar cada uma de 
                suas declarações,   em 
                vez de se limitar ao trabalho de anotar o raciocínio severo 
                de causa para efeito,  que 
                é verdadeiramente o único ponto característico 
                do assunto.  " Não 
                cessa por aí a critica, e com sua sinceridade caústica 
                completa: "Se exijo inteira justiça na minha arte, 
                é por tratar-se de coisa impessoal. (...) 
                  Você rebaixa para uma secessão de historietas 
                o que deveria ser uma série de conferências". 
                  Destas declarações 
                não muito simpáticas, obtém-se o ponto de 
                vista de Sherlock Holmes.   Ou 
                seja: ele não apenas não aprecia,  
                 como também não concorda com a maneira 
                pela qual o doutor focaliza seus casos. 
                
                     Não 
                se sabe se animado pelo amigo,   
                ou se ansiando demonstrar como se devia proceder, 
                  Holmes chegou a descrever algumas das suas investigações. 
                Fato que resultou em valioso material de analise.  
                 Ao narrar-se,   Sherlock 
                segue suas premissas lógica, 
                  procurando omitir clichês folhetinescos; 
                  esforçando-se para destacar a objetividade 
                e a ciência.   No 
                conto "A Juba do Leão" - 
                  o melhor trabalho do detetive como cronista -  
                 o leitor depara-se com uma boa aventura, 
                  porém fracassada do ponto de vista literário. 
                  Sherlock não é um ficcionista, 
                 não entende nada de literatura. 
                  Ele não é capaz de contar-se. 
                  E mesmo se o fosse,   dificilmente 
                se encontraria na obra saída da sua pena o mesmo Holmes 
                descrito por Watson. Também não é temerário 
                afirmar,   que não 
                se encontraria um Sherlock e uma Londres tão interessantes. 
                
                
                     Ora, 
                  não ha sensação 
                de aventura e perigo diante da fleuma completa.  
                 Só há surpresa quando existe alguém 
                passível de surpreender-se.  
                 Holmes é praticamente uma maquina: 
                  impassível,   
                soturno.   Tudo o que é 
                capaz de fazer - suas deduções, sua explosão 
                física, etc.- para ele, como sempre está lembrando 
                a Watson,   é simples 
                e elementar.   Por outro 
                lado, as habilidades de Holmes,   são 
                para o doutor,   o fato 
                mais impressionante que já lhe ocorreu na vida. 
                 Note-se o contraste.   Para 
                Sherlock seu mundo é obvio,   
                muitas vezes enfadonho e apenas tolerado sob o efeito de cocaína; 
                para Watson é impressionante. 
                
                     Neste 
                ponto torna-se importante compreender,  
                 pelo menos superficialmente, 
                  quem foi John H. Watson.  
                 Sabemos que não teve uma vida tranquila nem 
                convencional.   Segundo 
                nos relata na saga,   o 
                doutor esteve na campanha do Afeganistão, 
                  foi espectador de horrores que apenas são 
                possíveis nas escaramuças humanas. Diz haver sido 
                ferido,   fato este definitivo 
                para o seu retorno a Inglaterra.   Segundo 
                Conan Doyle o doutor deveria ser: "(...) um companheiro que 
                lhe servisse (a Holmes) de refletor,  
                 um homem instruído e ativo que pudesse ao 
                mesmo tempo acompanhá-lo nas investigações. 
                e narrá-las".   
                Quase toda a saga,   como 
                o sabe o leitor,   são 
                as narrações de Watson; 
                  ponto de interesse nestas, 
                  são as escolhas do doutor no tocante aos 
                casos -   é notório 
                que apenas uma pequena parte das aventuras foram contadas.  
                 E destas, muitas tem como palco de ação, 
                os Estados Unidos da América.
                
                     Nos 
                manuscritos deixados por Arthur Conan Doyle encontrou-se uma peça 
                intitulada "Anjos das Trevas";  
                 esta nunca fora publicada. 
                  Contudo,   
                nos serve por alguns motivos:   
                o texto fora provavelmente escrito entre 1889 e 1890,  
                 época em que Doyle dava os toques finais a 
                sua criação.   Deste 
                material podemos concluir que Watson viveu na América; 
                  daí poder,   
                no futuro,   descrever com 
                tanta perícia,   paisagens 
                e cidades americanas.   
                Porem,   não havendo 
                sido publicado, o texto de "Anjos das Trevas" criou 
                algumas controvérsias.  Desnecessárias, 
                diga-se.  Eis 
                quais foram:
                   1) 
                Alguns teóricos aceitam a peça como parte da saga 
                e admitem que Watson viveu nos Estados Unidos antes de integrar 
                a campanha do Afeganistão e conhecer Holmes.  
                 Ocultou o fato porque, 
                  tendo atingido a maturidade, 
                  compreendeu não haver procedido bem com uma 
                moça que conhecera na América.
                
                     O ponto 
                fraco desta argumentação é que tal estória 
                não apresenta uma cronologia coerente, 
                  tendo Doyle inclusive, 
                  usado trechos dela em outros trabalhos. Aventuras 
                não publicadas de Holmes foram amplamente aceitas como 
                parte da saga quando apresentavam coerência tanto na apresentação 
                das personagens como na cronologia.
                   2) 
                Outros teóricos são de opinião que se Doyle 
                não publicou este material,   
                seu conteúdo não pode ser admitido como parte da 
                saga.
                
                     O ponto 
                fraco desta argumentação é que existe uma 
                profusão de textos que só foram publicados após 
                a morte de Doyle e são aceitos pelos estudiosos da saga 
                Sherlockiana.
                    Aqui 
                o meio termo faz-se mister.  O bom escritor,   o capaz 
                de atar os nós da trama,  em geral sabe onde pisa. 
                Tais escritores,   antes de se lançarem ao lavoro 
                de escrever,   esboçam suas personagens de modo a 
                compreender-lhes o caráter e (ou) objetivos que as movimentam. 
                 A opinião que o bom senso clama,  deve prevalecer 
                sobre "Anjos das Trevas",  é:   não 
                importa se esta peça faz ou não parte oficial da 
                saga,   porem é valiosíssima como teste para 
                a elaboração profunda da personagem Watson. Permite-nos 
                saber que na cabeça de Doyle o seu doutor era um homem 
                vivido,   extremamente culto e maduro,  e reagiria desta 
                forma diante dos desafios.
                
                     Um homem de 
                cultura que errara muito no curso da vida;  sofrera. Contudo 
                um sujeito que aprendera com sua própria historia,   
                tornando-se um caráter elevado,   senhor de uma moral 
                subjetiva amplamente solidificada.   Sobre seus tropeços 
                passados,   basta-nos o início da saga. Não 
                fossem eles,   dificilmente se encontraria,  já 
                em avançada idade adulta,  um médico de pouquíssimos 
                recursos,  nenhuma clientela,   forçado a dividir 
                o aluguel com um desconhecido.   Mas será este homem, 
                 que apesar de toda sua experiência,   e por causa 
                dela,   terá no seu companheiro de despesas o objeto 
                da sua curiosidade e admiração.  Em nenhum 
                momento Watson fará como as personalidades medíocres 
                e sentirá inveja das potencialidades de Holmes;   
                ao contrário. 
                
                     Tendo como 
                ponto de partida que cada indivíduo enxerga uma parcela 
                da realidade à sua maneira, pode-se concluir que Holmes 
                fora criado por Watson.  O leitor não precisa concordar 
                com os argumentos aqui apresentados; estes devem ser um ponto 
                de apoio,   e quiçá de início,  para 
                aqueles que desejam aprofundar-se nas estórias de detetive 
                e mistério estreladas por Sherlock Holmes.   Na concordância 
                ou na discordância, este ensaio pretende, mais do que defender 
                uma tese sobre a obra de Doyle,  criar no leitor (ou açular) 
                aquilo que pode haver de mais importante num apreciador de literatura: 
                o senso crítico.
              
              Na parte três deste estudo sobre o 
                Mestre dos Detetives o leitor conhecerá 
                 um pouco do caráter de Holmes.
              