Nota Inicial:
                    Neste 
                espaço, já escrevi sobre Ivanhoé de Scott 
                e 20.000 Léguas Submarinas de Verne. O leitor pouco atento 
                deve ter-se perguntado qual a relevância de tais matérias 
                num site sobre RPG; responderia muito calmamente que toda possível. 
                Engana-se o rpgista que pensa que o RPG é feito primeiro 
                de dados e números; o RPG é essencialmente feito 
                de palavras (como o demonstra este site). E a literatura - nisto 
                não ha novidade -, é a melhor fonte deste rico recurso. 
                Admito não haverem sido poucas as idéias retiradas 
                da literatura para Os Últimos Dias de Glória; afinal, 
                mais vale uma matizada descrição, precisa e eficiente, 
                de paisagens e personagens, do que o enfadonho, maçante 
                e previsível: "vocês estão diante de 
                um elfo negro!"
                   A 
                coisa importante para se notar aqui é a estrutura de uma 
                campanha, que é semelhante a de um seriado. Ou seja: a 
                cada capitulo os heróis se deparam com problemas e movem 
                a trama em busca da solução. Como numa série, 
                com o passar do tempo e das aventuras, vai ficando mais difícil 
                para o DM desenvolver um bom e original roteiro. Não entrarei 
                aqui no mérito de DMs e jogadores, pois numa campanha, 
                muitos são os fatores de sucesso ou não. Inclinar-me-ei, 
                contudo, sobre esta difícil característica de uma 
                série: manter o bom nível dos enredos. Para tanto, 
                analisarei uma série importante na história da literatura, 
                e discutirei o quanto (ou não) as tramas se mantiveram 
                consistentes com o passar dos anos.
              1. A Origem dos seriados:
                    A 
                série da forma como a conhecemos - de TV, cinema, quadrinhos 
                etc - é muito recente, historicamente falando. Fora criada 
                por Arthur Conan Doyle, ao atinar numa maneira de escrever regularmente 
                para uma revista sem correr o risco de perder leitores. Ocorre 
                que nos idos de 1890, era comum se escrever folhetins - novelas 
                publicadas capítulo a capítulo -; mas, quando os 
                leitores por algum motivo perdiam uma edição, ou 
                quando não podiam acompanhar a trama desde o início, 
                invariavelmente desinteressavam-se. Diz Doyle: "Ocorreu-me 
                que um folhetim centrado num mesmo personagem poderia prender 
                o leitor à revista [
] um personagem unificador, que 
                percorresse todos os episódios (1) 
                [
] em que cada episódio pudesse ser lido 
                como uma estória isolada, mantendo um elo com a anterior 
                através das personagens principais (2)". 
                Isto pode parecer pouco, mas foi uma revolução na 
                forma de se escrever. E ainda hoje, ao ligar a TV e assistir a 
                sua série predileta, o leitor esta colhendo os frutos desta 
                invenção. Basta pensar que a obra "Fundação", 
                de Asimov, só foi possível devido estarem as revistas 
                já habituadas a publicar estórias em série. 
                E quais foram as personagens que serviram para este papel, o de 
                estrear os seriados?
                "Elementar, caro leitor! Sherlock Holmes e o doutor Watson".
              (1) 
                Memórias e Aventuras; Doyle, Conan; pag. 78;1993
                (2) The Final Problem of Sherlock 
                Holmes; Doyle, Conan; pag. 175; 1981
              
              2. Watson-Doyle-Holmes
                    Há 
                uma terrível controvérsia entre os pesquisadores 
                da obra sherlockiana sobre quando e onde primeiramente surgiram 
                Watson e Holmes. Para esclarecer rapidamente o leitor, devo dizer 
                que um ano antes da publicação de " Um Estudo 
                em Vermelho" , apareceu no Boy's Own Paper o conto de Doyle 
                "O Mistério da Casa de Tio Jeremy". Nesta estória, 
                embora os protagonistas tenham outros nomes, é fácil 
                deduzir quem eles são. Discussões a parte, tem-se 
                a data de 1887 como a da primeira aparição da dupla, 
                na novela "Um Estudo em Vermelho(1) 
                ".
                   O 
                livro, se não fracassou, também não fez sucesso 
                no Reino Unido. Doyle o havia vendido barato e tudo o que esperava 
                era que este "livrinho" - como muitas vezes o chamou 
                - pudesse abrir-lhe portas no mundo da literatura. E isto aconteceu 
                três anos depois; talvez não do modo como esperava. 
                O livro sobre Holmes e Watson fez rapidamente uma legião 
                de fãs nos Estados Unidos - evento semelhante ao ocorrido 
                com O Senhor dos Anéis, de Tolkien; até muito recentemente 
                autores britânicos circulavam nos EUA em edições 
                piratas ou de baixa qualidade, o que facilitava a sua divulgação, 
                sobretudo entre os jovens. Assim, um agente americano, representando 
                a revista Lippinscott, fora a Londres e marcara jantar com dois 
                autores britânicos dos quais desejava encomendar livros. 
                Um deles era Oscar Wilde, e sua contribuição fora 
                a novela "O Retrato de Doryan Gray"; o outro, Conan 
                Doyle, que não teve escolha: o agente deixou claro que 
                desejava uma nova estória sobre o incrível detetive 
                e seu companheiro cronista. Deste modo, Doyle escreveu para a 
                revista Lippinscott "O Signo dos Quatro (2) 
                ", excelente "thriller", palco da segunda 
                aparição de Holmes e Watson.
                   Particularmente, 
                sempre considerei a obra policial de Doyle de altíssima 
                qualidade artística - embora o próprio Doyle não 
                pensasse assim - ; o acabamento dos seus romances é impecável. 
                A leitura atenta dos dois primeiros livros da saga sherlockiana 
                leva o leitor experiente a muitas vezes duvidar da capacidade 
                do autor em atar os nós da trama de maneira eficiente e 
                sem lançar mão de tolas coincidências - estas 
                que afundam completamente romances de autores como Robin Cook, 
                S. King, Anne Rice etc; mas a mente rara de Doyle o faz com toques 
                de mestre. Ainda, o leitor experiente e avesso a preconceitos 
                literários, concordará que ha um clima semelhante 
                entre estas duas novelas de Doyle e a de Wilde "O Retrato 
                de Doryan Gray"; quase como se as personagens de ambas as 
                estórias habitassem num único e amplo romance. Na 
                verdade, o leitor de Poe, Wilde, Verne, Wells e Doyle é 
                levado a pensar estar lendo um fantastico tomo onde é narrada 
                a evolução e a decadência moral e cientifica 
                da humanidade.
              
                   "O 
                Signo dos Quatro", esperava Doyle, seria a ultima aparição 
                da sua dupla. Tanto que ao final do trabalho ele casou o dr. Watson, 
                desfazendo o núcleo essencial a trama. Apesar do relativo 
                sucesso, a obra, assim como a primeira, não trouxera retorno 
                financeiro. Mas não era por isto que o autor anelava abandonar 
                o seu detetive. Conan, como muitos autores, pensava em buscar 
                esta quimera chamada literatura "séria"; sonhava 
                em ver seu nome comparado ao de um Dickens, ao de um Walter Scott; 
                mal sabia que já havia criado o mais famoso personagem 
                da literatura do século XX
 Porém, antes de 
                abandonar completamente seus dois personagens, teve uma idéia 
                que mudou sua vida.
              Na segunda parte deste estudo, o leitor saberá 
                qual foi esta idéia, além de encontrar uma inédita 
                analise sobre a figura do doutor Watson.
              (1) . 
                Também no Brasil com o titulo: Um Estudo em Escarlate.
                (2) . Também no Brasil com 
                o titulo: O Sinal dos Quatro.
                