| 
               
                |  Por Marcelo Piropo
 |  
  
                Ivanhoéde Sir Walter Scott
 
 1.Naquela região agradável da alegre Inglaterra
 O romance inicia revelando uma Inglaterra repleta de florestas, 
              cheias de faias, carvalhos e lendas; habitadas pelos ecos dos elfos¹ 
              governados pelo rei Oberon e pelos vestígios dos antigos druidas 
              e da civilização Celta.
 
 
  Não 
              é, Ivanhoé, entretanto, um relato de fantasia strictu sensu, 
              ao contrário, propõe-se a ser uma narração quase histórica. Assim, 
              não anseie o leitor por ver um elfo ganhar vida nas páginas de Ivanhoé; 
              eles pertencem ao folclore e vivem somente na imaginação - superstição 
              - das personagens. 
 Durante toda a narrativa, Walter Scott não se esquiva de citar o 
              nome dos autores de onde retirou determinada cena ou caso; neste 
              quesito, vale destacar o Manuscrito de Wardour. Logo e o primeiro 
              capítulo, à maneira dos clássicos, Scott apresenta-nos a proposição 
              da obra, e o faz através de considerações lingüísticas (I;11).
 
 Ricardo Coração de Leão partiu para as cruzadas; ao retornar, em 
              1192, fora feito prisioneiro pelo duque Leopoldo, da Áustria, com 
              quem tivera desavenças na Ásia². O irmão de Ricardo, o príncipe 
              João, aliado a Filipe de França, armou um grande esquema para usurpar 
              o trono.
 
 Scott vai demonstrar a insatisfação inglesa com esta situação, atacando 
              a língua francesa: "Na corte, e nos castelos dos grandes nobres, 
              onde se emulava a pompa e a magnificência da corte, o franco-normando 
              era a única língua usada ... Em suma, o francês era o idioma da 
              honra, da nobreza e mesmo da justiça, enquanto a língua anglo-saxônia, 
              muito mais viril e expressiva, achava-se entregue ao uso das pessoas 
              rústicas, e dos camponeses, que não conheciam nenhuma outra." E 
              este será o tema de todo o livro, a luta da aviltada nobreza anglo-saxônia 
              contra o domínio franco-normando.
 
 Na verdade, não é casual que o meio de expressão deste embate seja 
              lingüístico, W. Scott viu-se diante de um grande problema quando 
              começou a compor a obra: como fazer o falar dos saxões medievais 
              inteligível ao mesmo tempo que mantinha teor de autenticidade histórica? 
              Para tal, ele fez amplo uso do Horne Tooke's philological treatise 
              The Diversions of Purle³.
 
               
                | 1.:No 
                  original em inglês o termo usado é fairy, fada em português. 
                  B. Silveira, contudo, em sua tradução da obra de Scott, optou 
                  pela palavra elfo. 2.: Durant, Will; 599; História da Civilização IV; 1950.
 3.: Barnaby, Paul; Hagan, Anette; Hill,Richard; Edinburgh University 
                  Library.
 |  
 Não será Ivanhoé, sem dúvida, uma obra para leitores de gosto duvidoso, 
            ou para pessoas apressadas; não é para os desejosos de ação estúpida 
            e artificial; também não é para aqueles indivíduos de sentidos contaminados 
            pela mídia ruidosa e fácil; não está-se falando de videoclipes ou 
            videogames, mas de literatura. Sobretudo, não é para criaturas vulgares.
 
 
  Mas, 
            se o leitor souber sorver as palavras, observar o lento surgimento 
            das personagens e das paisagens, terá a gratificação de viajar no 
            tempo e mergulhar - como nenhum autor conseguiu repetir - na Inglaterra 
            medieval; envolto à reminiscências da gloriosa era do rei Artur. 
 Para os que apreciam os temas relacionados com o medievo, Ivanhoé 
            é uma referência. O autor é sobremodo feliz na condução do enredo. 
            Quase não existem sumários narrativos¹ ao longo da obra e quando existem, 
            em sua maioria, referem-se a cenas já conhecidas dos leitores.
 
 A linguagem não é poética qual a de Dunsany, isto poderia ser demérito, 
            mas a obra não se pretende poética. É precisa. As descrições são pormenorizadas. 
            As ações das personagens empurram a trama adiante de modo bastante 
            suave e verossímil; e, embora Scott se mostre algumas vezes no texto, 
            sua interferência tem, em certos momentos, um tom muito mais estilístico 
            do que necessário; noutros, ele se mostrará para dizer de que fonte 
            se serviu.
 
 Trata-se de um romance lento, pertencente 
             ao início do século XIX; fora publicado 
            em 1820². Entretanto, o texto é carregado de  tensão, 
            e ações prosaicas, que em outros livros, de autores menos habilidosos,
 
              levariam-nos aos bocejos, em Ivanhoé têm 
            efeito oposto, o interesse pela narrativa cresce. Como quando Cedric, 
            pai do herói, ofendido pelo príncipe João, corta com a espada, a ponta 
            de uma lança que o ia perturbar (VII;93). 
                | 1.: 
                  Friedman, Norman; 108-137; The Theory of the Novel; 1967. 2.: 
                  Algumas fontes dizem que o romance apareceu em 1819. |  
 2.Os Personagens e o início da história
 
 A história começa quando Gurth, o guardador de porcos e Wamba, o bobo, 
            encontram uma comitiva normanda liderada pelo cavaleiro templário, 
            Brian de Bois-Guilbert, indivíduo de: "... olhos negros, penetrantes 
            e vivos ... Uma profunda cicatriz sobre a sobrancelha" que "aumentava-lhe 
            a severidade do semblante...". A comitiva, composta também pelo clérigo 
            Prior Aymer e por dois sarracenos, deseja passar a noite em Rotherwood, 
            morada do Saxônio Cedric, pai de Wilfred de Ivanhoé.
 
 Wamba dá-lhes uma informação errada, no entanto um peregrino auxilia 
            o cavaleiro desorientado, levando-o, e a seu séquito, até a casa do 
            orgulhoso Saxônio. Cedric é descrito como um patriota ressentido. 
            Impressiona a sua atitude para com estes inesperados hospedes, embora 
            cordial, declara não " avançar mais de três passos para além do dossel 
            da plataforma da sua própria sala a fim de ir ao encontro de alguém 
            que não tenha nas veias sangue real saxônio.
 
 
  Durante 
            o jantar há, desta vez entre os personagens, uma disputa entre a língua 
            de prestígio e a desprestigiada, disputa esta que alcançará seu clímax 
            (V;57) quando os normandos declararem que não há língua mais rica 
            na fraseologia variada exigida pelos esportes campestre do que a franco-normanda. 
            Ainda neste diálogo, o leitor é informado sobre o torneio que haverá 
            em Ashby-de-la-Zouch, e que Brian de Bois-Guilbert participará. 
 Também será neste jantar que conheceremos o calcanhar de Áquilis do 
            romance, a insípida Lady Rowena. Até este ponto, Ivanhoé não se tornou 
            presente na narrativa, ele está no desafio que o peregrino faz em 
            seu nome (de Ivanhoé) contra o cavaleiro Bois-Guilbert, nas perguntas 
            de Lady Rowena, e nos resentimentos de Cedric que pensa, ressentido, 
            no filho ingrato que o abandonou.
 
 A ceia é interrompida por um outro viajante que pede pouso, Isaac, 
            o judeu. A maioria dos criticos não atentam para a precária construção 
            da personalidade de Rowena, consentrando-se em Isaac; afirmam tratar-se 
            de um personagem estereotipado, e os judeus, em geral, não apreciam 
            o livro por causa dele.
 
 Não deveriam. Isaac - e sua filha Rebecca que surgirá mais adiante 
            - é o personagem mais valente do livro. Mesmo que o autor refira-se 
            sempre a ele como avarento, ou pertencente a uma raça desprezada, 
            nos momentos difíceis Isaac se nos mostra grande, ao passo que não 
            há cristão no romance que não seja ou oportunista ou corrompido por 
            profundos preconceitos.
 
 O peregrino salva o judeu, avisando-o de uma emboscada que os sarracenos 
            preparavam, em troca, Isaac lhe consegue uma rica armadura com a qual 
            o peregrino poderá inscrever-se no torneio. Neste ponto o leitor começa 
            a se perguntar quem é o peregrino? Pela construção do texto, e pistas 
            dadas por Scott, supomos que só podem ser duas pessoas, Ivanhoé disfarçado, 
            ou o rei Ricardo que retornara, também disfarçado, a Inglaterra.
 
 Chegando a narrativa a Ashby-de-la-Zouch, Scott presenteia os amantes 
            dos temas medievais com as regras do torneio entre cavaleiros e com 
            uma descrição competente da liça e dos espectadores. É na arquibancada 
            que encontraremos a filha de Isaac, Rebecca, efígie da retidão moral 
            e da ponderação, de cuja figura "podia, com efeito, comparar-se à 
            das mais altivas beldades da Inglaterra, mesmo julgada por um connoisseur 
            perspicaz".
 
 A descrição prossegue assim: "As suas formas delicadamente simétricas 
            eram ainda realçadas por uma espécie de traje oriental ... O brilho 
            dos olhos, o arco soberbo da sobrancelhas, o nariz aquilino e bem 
            feito, os dentes alvos como pérolas e a profusão dos seus cabelos 
            negros, encaracolados ... tudo constituía um conjunto de encantos 
            que nada ficava a dever ao das mais formosas damas que a cercavam".
 
 
  Ela 
            ofuscará todos os demais personagens da trama, e, daí até o final 
            do romance, todas as ações irão girar em torno da sua figura, da nobre 
            e humilde judia, e se Scott realmente estereotipou os judeus, prestou 
            louvores a estes em cada palavra que escreveu sobre Rebecca. 
 E Scott não deve ter percebido o que fez, pois, levando Ivanhoé (mais 
            adiante na narrativa) a preteri-la a Rowena, apenas mostrou quão ignorantes 
            e estúpidos eram - ou são - os preconceitos cristãos. No começo, o 
            torneio é motivo de desgosto para os Saxões. Bois-Guilbert, o templário, 
            prostra fácil todos os desafiantes.
 
 Contudo, um cavaleiro misterioso chamado Deserdado, auxiliado por 
            um outro cavaleiro misterioso, o Cavaleiro Negro, irão reverter a 
            situação, lutando pela causa saxônia e vencendo todos os mantenedores 
            do princípe João. Incluindo Bois-Guilbert.
 
 O cavaleiro Deserdado revela-se, então, Ivanhoé. Finalmente, na página 
            154, encontramos o herói que dá título a obra, mas não aproveitamos 
            muito, ele desmaia logo após receber o prêmio do torneio. Estava muito 
            ferido. Rebecca o socorre e cuida. Estará ferido até quase o final 
            da narativa. Não faz falta, há personagens melhores.
 
 Título mais conveniente para o livro seria Rebecca, mas isto não chega 
            a ser um problema. Aqueles amantes dos temas medievais tem nova surpresa, 
            quando o irado João desafia um ousado arqueiro, impertinente em suas 
            palavras.
 
 "Qual o teu nome...?" Pergunta o princípe João.
 "Locksley." Responde o arqueiro.
 
 Isto é suficiente para os conhecedores das crônicas inglesas. Locksley 
            era o nome do mítico Robin Hood.
 
 Acompanhamos então as suas vitórias e proezas no manejo do arco e 
            da flecha. Maurice de Bracy, um misto de cavaleiro e mercenário, que 
            já havia aparecido antes, mas só neste ponto destaca-se, desenha um 
            plano para sequestrar Lady Rowena, forçá-la a casar-se com ele, e 
            se apossar de suas terras. Todavia, como toda a comitiva de Cedric 
            é sequestrada e como Rebecca por acaso viajava com eles, as cenas 
            mais dramáticas e importantes serão vividas por ela.
 
 Destaque para o momento em que Bois-Guilbert tenta violá-la e para 
            os instantes em que a cativa, colocando as suas necessidades em segundo 
            plano, cuida do enfermo Wilfred de Ivanhoé. Daí virão as motivações 
            de toda obra de aventura, motivações estas que remontam a Ilíada de 
            Homero: resgatar a mulher que fora aprisionada no castelo inimigo.
 
 Não faltarão descrições de fabulosas batalhas. Em alguns momentos 
            o leitor sentirá o peso da armadura completa e o poder da maça. Vêm 
            libertá-los o Cavaleiro negro - já sabemos tratar-se do próprio Ricardo 
            Coração de Leão - e todo o bando de Locksley, munido das suas certeiras 
            setas. Quando a manutenção do castelo que servia de cativeiro tornou-se 
            insuportável, quem Bois-Guilbert levou consigo? A resposta é escusada.
 
 Sir Walter Scott
 
 Scott nasceu em Edinburg, Escócia, em 15 de Agosto de 1771. Seus livros 
            durante muito tempo foram estigmatizados como literatura meramente 
            juvenil. Não se pode afirmar se, ou por haverem os acadêmicos atentado 
            para as qualidades indiscutíveis da sua obra, ou por não haverem mais 
            muitos jovens contemporâneos capazes de ler Scott, a partir do século 
            xx surgiram vários estudos críticos respeitáveis sobre seus livros, 
            em particular sobre Ivanhoé.
 
 É indiscutível a influência que exerceu sobre Nickolai V. Gogol, pai 
            do realismo russo e autor de Almas Mortas, e outros grandes escritores; 
            Gogol, em sua novela Taras Bul'ba - que é como Ivanhoé uma narrativa 
            de cunho histórico -, deixa-nos sentir a presença do estilo e das 
            escolhas lexicais de Scott.
 
 A um fato interessante na biografia de W. Scott. Afirma-se ter sido 
            ele o primeiro escritor da história humana a fazer fortuna escrevendo 
            livros. Entretanto, a falência da editora a qual havia se associado 
            o colocou em situação periclitante. Sir Walter Scott morreu em 21 
            de setembro de 1832, em Abbotsford, Roxburgh, Escócia.
 
 
  Nota: Neste comentário crítico, foram utilizadas duas edições de 
            Ivanhoé. A primeira: Ivanhoe; published in Penguin Books; 1982. A 
            segunda: Ivanhoé; Abril Cultural; 1.º Edição; 1972.
 |