|   Eu me lembro que quando comecei a jogar RPG foi 
                                através do GURPS. A princípio eu 
                                fiquei reservado, pois não estava acostumado 
                                a ver um monte de gente se fazendo passar por 
                                pessoas das quais não eram. Mas logo logo 
                                eu me acostumei, percebi que era divertido estar 
                                no faz de conta, e eram muitas possibilidades. 
                                Na época eu e os outros jogadores não 
                                usávamos todas as regras do sistema GURPS, 
                                pois para nós novatos era um pouco complexo, 
                                no entanto não nos importávamos 
                                muito com isso já que o divertimento era 
                                garantido e o essencial estava ali, a interpretação.
 
 
 
                                 
                                  |  2ª Edição 
                                      do Player's Handbook do AD&D
 |  Com o passar dos anos conheci 
                                novos sistemas: o D&D 1ª Edição 
                                (a famosa “Caixa Preta”) lançado 
                                pela Grow, e o Advanced Dungeons & Dragons, 
                                a versão original. Foi a partir deste último 
                                que comecei a usufruir completamente o sistema, 
                                embora sempre que ignorasse uma coisa ou outra 
                                que eu e meu grupo considerássemos irrelevante. 
                                Mas o divertimento permanecia o mesmo, o faz 
                                de conta. A diferença era que havia 
                                o uso completo do sistema e com isso, a oportunidade 
                                de “se sair melhor” no jogo criando 
                                combinações nas estatísticas 
                                dos personagens de modo que eles pudessem ficar 
                                mais poderosos. Muitos aderiram a este comportamento, 
                                eu fui um deles, na época chamaram isso 
                                de overpower. Ser overpower 
                                era divertido, era que nem quando colocávamos 
                                algum código no vídeo-game para 
                                zerar os jogos com mais facilidade. O problema 
                                é que esta facilidade gerou um conforto 
                                no jogo que fazia desaparecer qualquer emoção 
                                e surpresa. Como as combinações, 
                                garantidas pelo conhecimento exacerbado sobre 
                                o sistema, aumentavam fantasticamente a chance 
                                de derrotar os monstros, aliás, derrotar 
                                não, trucidar seria uma palavra melhor. 
                                Eu demorei algum tempo a abandonar essa idéia 
                                para tentar recuperar aquele divertimento do faz 
                                de conta.
 Eu sempre gostei do GURPS e de seu poder genérico, 
                                mas o que me chamou a atenção no 
                                D&D não era seu sistema em si, mas 
                                seus livros cheios de tanta ambientação 
                                e aventura que alimentava o sonho de todos aqueles 
                                amantes das histórias medievais de fantasia. 
                                Consequentemente meu fanatismo por Forgotten Realms 
                                começou daí. Ler aqueles suplementos 
                                dos Reinos Esquecidos era quase como ler um romance 
                                de Tolkien ou Marion Zimmer Bradley. Quando conheci 
                                alguns feitos dos maiores heróis de Faerûn 
                                eu imaginava a grandiosidade deles multiplicado 
                                por mil, saber que Elminster batalhou contra Bane 
                                junto com Mystra era como se assistisse Moisés 
                                levantando os braços e pedindo a Deus que 
                                abrisse o mar ao meio. Portanto era bastante perceptível 
                                que os livros de AD&D possuíam um contra 
                                peso ao fator sistema que possibilitou o incentivo 
                                ao fator interpretação.
 
 O RPG, como já foi mencionado em outro 
                                texto, começou com a criação 
                                do D&D por Gary Gygax e Dave Arneson. Ambos 
                                eram desenvolvedores de jogos de estratégia 
                                de tabuleiro como o famoso War, Supremacia, entre 
                                outros. O Xadrez é um autêntico jogo 
                                de estratégia, mas os jogos de tabuleiro 
                                balanceavam o planejamento com o fator sorte. 
                                Eles se resumiam somente a isso, entretanto, o 
                                D&D estimulou a vontade de se interagir na 
                                aventura fazendo representações 
                                de personagens fictícios e enfrentando 
                                dificuldades que só existiam na nossa imaginação. 
                                Como havia mencionado no parágrafo anterior 
                                a ambientação contida nos livros 
                                de AD&D deu uma grande motivação 
                                à interpretação, porém 
                                isso estava fadado a terminar.
 
 Em 2000 surgiu a 3ª Edição 
                                do Dungeons & Dragons, sendo lançado 
                                pela empresa Wizards of the Coast que adquiriu 
                                os direitos dos produtos da TSR a qual possuía 
                                tudo o que tinha a marca D&D. Esta 3ª 
                                Edição veio apresentando um sistema 
                                bem mais complexo que seu antecessor, o d20. Ele 
                                é uma espécie de compilação 
                                do AD&D com outros livros da 2ª Edição 
                                como o Combat & Tatics, Spells & Magic, 
                                Skills & Power entre outros produtos que visavam 
                                auxiliar o limitado sistema. O d20, um sistema 
                                aberto ao público, incluindo sua versão 
                                3.5, proporciona um grande equilíbrio entre 
                                os personagens e um funcionamento mais controlado 
                                do jogo. Contudo, apesar da qualidade do fator 
                                sistema, o mesmo não ocorreu com a ambientação, 
                                a história e o incentivo à interpretação.
 
 Aquele conceito de história e ambientação 
                                empregados na 2ª Edição desapareceram 
                                misteriosamente na 3ª Edição, 
                                sendo que logicamente também deveriam ser 
                                aprimorados assim como foi feito com o sistema 
                                de jogo. Percebe-se isso observando a linguagem 
                                extremamente técnica nos livros novos onde 
                                tudo parece girar em torno apenas das regras. 
                                Existe uma explicação exagerada 
                                sobre todas as capacidades dos personagens através 
                                de extensas estatísticas de jogo, e as 
                                descrições de ambientação 
                                se transformaram em meras desculpas para a apresentação 
                                de várias características do novo 
                                sistema, como classes de prestígio, talentos, 
                                itens mágicos, magias e vários outros 
                                termos.
 
 Além de um sistema reformado, a 3ª 
                                Edição veio com novidades, entre 
                                elas as Miniaturas D&D. Este novo material 
                                é totalmente compatível com os demais 
                                produtos D&D através de uma padronização 
                                que permite o auxílio das miniaturas na 
                                condução de um combate durante a 
                                sessão de jogo. As miniaturas também 
                                são distribuídas em embalagens que 
                                contém regras básicas de D&D 
                                podendo serem usadas como um jogo de tabuleiro 
                                comum. Como não há a necessidade 
                                da interpretação nesta forma de 
                                jogo então a atividade empregada é 
                                a estratégia.
 
 
 
                                 
                                  |  City of the 
                                      Spider Queen
 |  Para trazer um exemplo sobre 
                                o que foi abordado aqui eu pensei em elaborar 
                                uma resenha sobre um livro da 3ª Edição 
                                de Forgotten Realms lançado há algum 
                                tempo, no entanto, não consegui estímulo 
                                para este intento já que a qualidade deste 
                                suplemento é tão patética 
                                que seria perda de tempo reservar uma matéria 
                                só para ele. O nome do livro é City 
                                of the Spider Queen, uma aventura desenvolvida 
                                para 4 personagens de nível 10 e, caso 
                                sobrevivam até a conclusão dela, 
                                eles chegarão ao nível 18!! Isso 
                                mesmo, o livro informa que se todos os obstáculos 
                                forem superados os personagens alcançarão 
                                o 18º nível.
 A história da aventura se passa durante 
                                a época em que ocorreu o “Silêncio 
                                de Lolth”, um período em que a Deusa 
                                Aranha parou de responder as preces de seus seguidores. 
                                A trama consiste no surgimento de uma grande ameaça 
                                vinda do Subterrâneo. A cidade drow de Maerimydra, 
                                devido ao conflito gerado pelo Silêncio 
                                de Lolth encontra-se em ruínas e dominado 
                                por um culto da deusa Kiaransalee, liderada pela 
                                sacerdotisa drow albina Irae T’ssaran. Ela 
                                criou um exército de mortos-vivos e pretende 
                                dominar outros locais no Subterrâneo e na 
                                superfície. O suplemento sugere que um 
                                grupo de aventureiros da superfície se 
                                envolva no conflito investigando alguns fatos 
                                ocorridos no Vale da Adaga, onde de lá 
                                eles seguiriam uma pista até as cavernas 
                                de Szith Morcane, um posto avançado drow 
                                construído pelos habitantes de Maerimydra. 
                                O que se segue depois neste percurso até 
                                o templo de Irae é uma verdadeira piada 
                                de mau gosto.
 
 Investigando as cavernas Szith Morcane, os PJs 
                                podem descobrir evidências dos planos da 
                                sacerdotisa Irae. Então dali o grupo seguiria 
                                pelo resto do Subterrâneo até a cidade 
                                de Maerimydra. Como existem muitas dificuldades 
                                para que os personagens possam de teletransportarem 
                                até o objetivo, então eles devem 
                                singrar as Deep Wastes, e é neste percurso 
                                que surge um grande zoológico de criaturas 
                                para que os PJs possam matá-los e ganhar 
                                os pontos de XP a fim de adquirir níveis 
                                suficientes para superarem as ameaças finais.
 
 Fazendo uma análise, da superfície 
                                à conclusão da aventura com a chegada 
                                dos aventureiros até o templo de Irae eles 
                                deverão enfrentar cerca de 400 a 617 criaturas! 
                                Isso mesmo! Em média seriam 500 criaturas 
                                que precisam ser derrotadas antes do objetivo 
                                final, e olhem que não incluí todos 
                                os monstros de possíveis encontros aleatórios, 
                                pois o grupo enfrenta uma das possibilidades de 
                                cada encontro aleatório.
 
 Em todo o decorrer da aventura eu não me 
                                lembro de ter visto alguma premiação 
                                de XP aos PJs por um cumprimento de uma missão 
                                ou alguma decisão que afetasse consideravelmente 
                                o objetivo. Então, logicamente percebemos 
                                que para os PJs evoluam eles precisam se transformar 
                                em genocidas e matar centenas de criaturas. Essa 
                                parece ser a única forma de conseguir XP. 
                                Se os leitores puderem ver algumas aventuras da 
                                2ª Edição, constatarão 
                                que antigamente não era só a matança 
                                que fazia os personagens evoluírem, pois 
                                muitos outros fatores influenciavam nessa questão.
 
 
 
                                 
                                  |  Acreditem! 
                                      O Balor virou monstro aleatório na 
                                      aventura City of the Spider Queen! O que 
                                      será que um demônio tão 
                                      poderoso como esse estaria fazendo perdido 
                                      rondando o Subterrâneo?
 |  Outro aspecto importante é 
                                a falta de total caracterização 
                                dos PDMs. A Irae T’ssaran e os demais vilões 
                                são meros bonecos que ficam esperando os 
                                personagens aparecerem para atacá-los. 
                                Mas a pergunta que eu faço é a seguinte: 
                                “Por que os suplementos da 3ª Edição 
                                não difundem o teor romântico das 
                                aventuras como era feito na 2ª Edição?” 
                                O que percebemos é que os livros da 3ª 
                                Edição estimulam os jogadores a 
                                criarem estratégias sobre as combinações 
                                dos poderes dos personagens para “vencerem” 
                                no jogo. Daí chegamos ao porquê do 
                                título deste artigo.
 Se o elemento romântico e descritivo das 
                                aventuras for retirado isso transformará 
                                as mesmas em aventuras de “andar e bater”. 
                                Não estou querendo dizer que todo jogador 
                                de RPG que for jogar estas novas aventuras vai 
                                deixar de interpretar, na verdade ele ficará 
                                insatisfeito com a falta de suporte para isso. 
                                É claro também que um bom mestre 
                                de jogo poderia pegar uma aventura como City 
                                of the Spider Queen e alterá-la de 
                                modo a deixá-la mais romântica para 
                                ser usada em seus jogos. Mas quem gostaria de 
                                ficar “consertando” livros de má 
                                qualidade ao invés de ler os que realmente 
                                fossem completos?
 
 Eu compreendo que os jogadores mais novos não 
                                entenderão quase nada do que foi dito aqui, 
                                isso acontece por um simples motivo, estes jogadores 
                                conheceram o RPG através da 3ª Edição 
                                do D&D, portanto eles não sentem falta 
                                de nada do que não viram. Isso dificulta 
                                e muito para este novo jogador o discernimento 
                                na questão do fator interpretação 
                                e descrição de cenário. Por 
                                acaso qual jogador novo iria preferir comprar 
                                os livros velhos da 2ª Edição 
                                com figuras e diagramações ultrapassadas 
                                ao invés de apenas os livros mais novos 
                                com ilustrações estonteantes e visual 
                                moderno? Esta questão estética só 
                                piora a situação e consolida o retorno 
                                do fator estratégia nos suplementos de 
                                RPG do D&D onde a diversão resume-se 
                                em dosar bem as capacidades dos PJs de modo a 
                                vencer o jogo destruindo todos os inimigos. Esperamos 
                                que esta condição se modifique e 
                                o D&D “evolua” novamente oferecendo 
                                algo melhor do que “andar e bater” 
                                aos novos jogadores.
 
 
  
 Sobre o Autor
 
                                 
                                  |  Ivan Lira
 |  Ivan Lira começou 
                                no RPG com o GURPS em 1992, só 
                                foi conhecer o maravilhoso D&D 
                                anos depois. Mas só ficou satisfeito mesmo 
                                quando surgiu os Reinos Esquecidos a qual venera 
                                até hoje. Quando foi chamado por seu amigo 
                                e mestre Marcelo Piropo para iniciar uma nova 
                                campanha de Forgotten Realms 
                                junto com Ruberval Fonseca, uma história 
                                começou ali, foi a gênese dos Últimos 
                                Dias de Glória.
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