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 Suas pernas 
                                andavam de modo autômato, acompanhando a mulher 
                                que momentos atrás parecia querer ajudá-la. Estarrecida 
                                e atônita, Aila Ilindiel lutava para compreender 
                                o que fizera. Agora, prostrada diante de uma torre 
                                circular imensa, forjada em ferro maciço e sólido, 
                                a barda observava os intricados inscritos que 
                                permeavam toda a parede. A passos lerdos, atravessou 
                                portões também em metal maciço, e desceu escadas 
                                que não pareciam terminar. Não atentava para os 
                                detalhes da construção que a cercava, atordoada 
                                que estava. A cada passo que dava, reminiscências 
                                dos últimos acontecimentos vinham à tona.
  **********       Abriu 
                                os olhos lentamente, e a paisagem era o que poderia 
                                se chamar de Um céu completamente cinzento abria-se 
                                ao horizonte, e planícies igualmente cinzentas 
                                pareciam estender-se infinitamente. Conforme despertava, 
                                sua mente trazia às claras o que havia acontecido: 
                                o golpe de machado fatal que espatifara suas vértebras, 
                                perpetrado por aquele monstro bárbaro sanguinário, 
                                fazendo-a perecer sem agonia.        Instintivamente 
                                levou a mão ao local do ferimento, e viu que nada 
                                havia. Foi então que atinou a olhar para si mesma, 
                                vislumbrando-se no seu vestido púrpura preferido, 
                                e então juntou os fatos de maneira cabal — a pele, 
                                sem tom, provava o que sua mente se recusava a 
                                aceitar. Estava morta.       Levantou 
                                a cabeça, atordoada. Então... estava morta. Olhou 
                                outra vez ao seu redor, enquanto buscava nas profundezas 
                                de suas memórias informações sobre o destino daqueles 
                                que morrem. Talvez tivesse até conseguido recordar 
                                mais detalhes, se não tivesse percebido diversos 
                                outros seres esbranquiçados como ela, vagando 
                                aparentemente sem destino. Almas sem corpos, tão 
                                confusas e perdidas quanto ela.       Tentou 
                                desvencilhar a visão, e concentrar seus pensamentos. 
                                O que as diversas conversas em estalagens e tavernas 
                                poderiam revelar-lhe agora? Lembrou-se de uma 
                                conversa com um nobre da cidade de Águas Profundas, 
                                que desejava muito mais do que um vinho quente 
                                e uma conversa amena para aquecê-lo naquela noite.       “Segundo 
                                o que me disse um sacerdote do Senhor dos Mortos, 
                                as almas são levadas ao Plano da Fuga, regido 
                                pela neutralidade de Kelemvor. Lá, elas aguardam 
                                até que um enviado do deus ao qual seus votos 
                                eram dedicados venha buscá-lo.” “Entretanto, as almas dos descrentes 
                                têm um destino nefasto: são levadas para proteger 
                                a Cidadela dos Mortos, onde passam a eternidade 
                                a serviço do deus.”       Um 
                                sussurro que parecia produzido pelos ventos trouxe 
                                Aila de volta. Ao longe, pôde observar uma enorme 
                                cidadela, de altas torres e muralhas, esbranquiçadas. 
                                Desnorteada e emaranhada em seus pensamentos, 
                                a barda de longas madeixas loiras e formas generosas 
                                seguiu até a famosa Necrópole.       E 
                                se a sua fé não fosse o suficiente? E se o que 
                                ela fizera em nome da Senhora dos Cabelos de Fogo 
                                não fosse o bastante? Sune, a deusa da beleza 
                                e do amor, pregava o auxílio aos outros, para 
                                que eles também fossem dignos de conhecer os encantos 
                                da paixão. Aila não havia sido muito ativa em 
                                sua busca nos últimos tempos, mas outras causas 
                                demandaram-lhe a atenção. E estava certa de que 
                                havia promovido o nome da deusa. E sim, isso deveria 
                                bastar. A Senhora dos Cabelos de Fogo saberia 
                                recompensá-la. Com a confiança renovada, a barda 
                                continuou o caminho, embora um tanto incerta de 
                                onde ele fosse acabar.       Conforme 
                                se aproximava da cidade, pôde divisar melhor os 
                                contornos das muralhas, e seus ouvidos filtraram 
                                o que julgava até então ser o uivo do vento: gritos 
                                e lamentos, vindos da cidade, proferidos pelas 
                                almas descrentes, que não negavam devoção a qualquer 
                                divindade. Então era assim que os ateus passavam 
                                a eternidade? Presos a uma cidadela, tornando-se 
                                parte de suas fundações?       Assustada, 
                                sentiu as pernas fraquejarem. Decerto até o mais 
                                devoto dos homens se abalaria com tamanha privação. 
                                Instintivamente, sem conseguir desviar o olhar 
                                dos rostos de todas aquelas pessoas, afastou-se, 
                                tropeçando em um desnível de terra. Abalada demais 
                                para levantar-se, tentou se arrastar, quando uma 
                                voz feminina e suave surpreendeu-a:       “Aila 
                                Ilindiel, seu lugar não é aqui.”       Virou 
                                o rosto, surpreendendo-se com a visão: uma belíssima 
                                mulher, de traços harmoniosos e delicados, pele 
                                pálida e longos cabelos vermelhos estendia-lhe 
                                a mão, em um gesto benévolo de ajuda. Do alto 
                                de suas costas saiam felpudas asas num tom escarlate, 
                                e a mulher esboçava um leve sorriso tranqüilizador. 
                                Em frangalhos, Aila aceitou a ajuda, e ambas seguiram 
                                para longe da muralha.       “Como 
                                sabe o meu nome?”“Eu sei de 
                                muitas coisas, Aila. E você já sabe o que aconteceu, 
                                não?”
       A 
                                jovem demorou um pouco, relutante em aceitar o 
                                fato, e assentiu com a cabeça silenciosamente. 
                                “Ótimo”, ouviu a desconhecida sussurrar.       “Então 
                                você sabe também o que acontece com as almas a 
                                partir de agora, não é?”, sem esperar a resposta, 
                                continuou: “Sabe que aquele responsável por sua 
                                morte, aquele orc desprezível de nome Tarûk, também 
                                está morto? E que em breve estará recebendo sua 
                                recompensa? A recompensa por ter espalhado toda 
                                aquela destruição, por ter causado dor a tantas 
                                pessoas.”       Aquelas 
                                palavras fizeram Aila parar a sua caminhada. Claro, 
                                se ele de fato morrera, sua alma seria recompensada 
                                por seu deus monstruoso de único olho. Discretamente, 
                                a desconhecida sorriu ao ver a reação da barda. 
                                Estava chegando aonde queria. Confiante, continuou 
                                seu discurso:       “Sim, 
                                ele estará recebendo dons por ter matado tantas 
                                pessoas, e por ter disseminado a morte entre os 
                                elfos da Alta Floresta. Isso é o que você considera 
                                justiça, Aila Ilindiel?”       “E... 
                                o que eu posso fazer para impedir?”“Junte-se 
                                a mim. Eu concederei a ti os poderes para a justiça 
                                necessária.”
       Aila 
                                estava confusa. Havia perecido pela lâmina daquele 
                                machado, e claro que faria alguma coisa se pudesse. 
                                Mas aqueles eram desígnios divinos: ele receberia 
                                seu descanso eterno, assim como ela também. Insegura, 
                                a jovem olhou para a mulher, que até então nem 
                                se preocupara em dizer o seu nome.       “Mas... 
                                esta justiça não deve ser feita pelas minhas mãos. 
                                Isso não é correto. Não... não sou eu quem decido 
                                isso.”“Preciso lembrá-la 
                                então, Aila de Águas Profundas, que sua morte 
                                e a de seus companheiros foram em vão? O exército 
                                de orcs ainda se concentra na região, e em breve 
                                os elfos da cidade de Sylvan receberão retaliações. 
                                Você sabe que eles não poderão resistir. 
                                E você poderia evitar esse derramamento de sangue 
                                inútil. Não era isso que você queria em vida, 
                                Aila Ilindiel?”
 “Esses assuntos... 
                                já não me concernem.”, respondeu a barda, embora 
                                não estivesse tão segura de suas palavras. “Eu 
                                morri em prol dessa causa. Esses fatos... já não 
                                me dizem respeito.”
       Num 
                                ímpeto de coragem, sentido estar indo contra todas 
                                as suas vontades, deu as costas à desconhecida. 
                                Não sabia quem ela era, mas parecia uma criatura 
                                celestial – as feições harmoniosas, agora entristecidas, 
                                apunhalavam a barda. Sentia como se tivesse ferido 
                                uma beleza até então imaculada, até que novas 
                                palavras da mulher alada a fizeram parar mais 
                                uma vez:       “E 
                                se eu disser que o seu irmão gêmeo, Alexander 
                                Ilindiel, também pereceu do mesmo golpe que tirou 
                                a sua vida?”       Então 
                                se recordou do par de anéis de platina que comprou 
                                com a insistência do irmão. Em questão de segundos 
                                lembrou-se da prece que Alex fizera momentos antes 
                                de invadirem o acampamento orc, explicando que 
                                os ferimentos que Aila viesse a sofrer seriam 
                                partilhados por ele.       “E 
                                não pense em protestar. Eu quero proteger você.”“Você está 
                                dizendo... que... ele morreu... por minha causa...?”
       A 
                                mulher não respondeu, e nem precisava fazê-lo. 
                                Mais uma vez, Aila levou a mão ao local onde deveria 
                                estar o ferimento, e imaginou a dor que seu irmão, 
                                um guerreiro santo, treinado para servir a Torm, 
                                sentira. E a morte dele teria sido tão vã quando 
                                a sua.       “Ele... 
                                está aqui? Nesse lugar?”“Sim, está.”
 “Leve-me até 
                                ele! Leve-me até ele e... e então terá sua resposta.”
 “Infelizmente, 
                                as coisas não funcionam assim, Aila. Meus patronos 
                                lutam pela justiça verdadeira. A justiça que você 
                                também deseja. Você não deve me temer.”
       Passaram-se 
                                alguns minutos de silêncio que pareciam se estender 
                                por uma eternidade. Estava dividida entre o que 
                                acreditava ser a ordem celestial e o que seu coração 
                                desejava. Queria ser capaz ignorar aquele pedido, 
                                mas quem quer que tivesse mandado aquela mulher 
                                parecia compartilhar dos desejos de Aila. Respirou 
                                fundo e quebrou o silêncio que perdurará até então:       “Eu 
                                aceito. Leve-me até meu irmão.”       A 
                                mulher tocou a barda no ombro, que em um piscar 
                                de olhos viu-se em outro lugar. Estava agora próxima 
                                às muralhas, mas isso não a preocupava agora. 
                                Reconheceu o irmão, com suas grandes e exuberantes 
                                asas felpudas e esbranquiçadas, lutando entre 
                                demônios que pareciam estar realizando um ataque 
                                à Necrópole de Kelemvor.       “Ele 
                                está em problemas. Vamos ajudá-lo.”       Aila 
                                assentiu silenciosamente, e iniciou uma canção 
                                épica, que conhecia desde criança. Logo suas palavras 
                                soaram nos corações dos soldados de Kelemvor, 
                                e Alexander não tardou a reconhecer a irmã. Se 
                                não estivesse tão ocupado, teria se perguntado 
                                como ela teria chegado até ali. Com as esperanças 
                                renovadas, desferiu um ataque certeiro no seu 
                                oponente.       Se 
                                não conhecesse seu irmão, Aila poderia dizer que 
                                ele de fato viera dos planos celestiais: alto, 
                                forte e com cabelos loiros que desciam até os 
                                ombros. As linhas do rosto eram definidas, extremamente 
                                semelhantes às do pai, que sequer chegou a conhecer, 
                                e acompanhadas por olhos azuis límpidos e claros, 
                                capazes de enxergar o mal no coração das pessoas. 
                                Do alto das costas, surgiam duas asas felpudas 
                                e brancas, manifestação recente de sua herança 
                                celestial. Asas essas que acabavam de ser feridas 
                                por um raio de fogo concentrado, lançado dos olhos 
                                do construto com o qual combatia.       Era 
                                uma criatura bizarra, que possuía um corpo semelhante 
                                ao de uma aranha de órbitas vazias. Claramente 
                                artificial, se prostrava ameaçadora diante de 
                                Alexander, que, portando uma grande espada brilhante, 
                                desferiu dois ataques nas patas da criatura, mas 
                                que pouco a afetaram. A desconhecida de cabelos 
                                vermelhos bateu levemente as asas, elevando-se 
                                um pouco, e logo em seguida tensionou o arco, 
                                disparando duas flechas na direção do construto. 
                                Uma delas cravou-se no chão, enquanto a outra, 
                                com sua ponta flamejante, acertou o alvo.       Então 
                                um som semelhante a uma corneta soou ao longe, 
                                e a horda demoníaca entendeu aquilo como sinal 
                                de retirada. O construto, instruído para essas 
                                situações, desceu suas grandes pinças aracnídeas 
                                e prendeu Alexander, sem muita dificuldade, e 
                                logo iniciou sua caminhada. Aila então iniciou 
                                uma nova e breve canção, invocando um hipogrifo, 
                                vindo dos planos de Sune. Usando o idioma dos 
                                planos celestiais, num tom um tanto desesperado, 
                                ordenou que atacasse a criatura. Enquanto isso, 
                                a mulher realizou dois tiros certeiros, um deles 
                                entrando na órbita vazia do construto, que em 
                                seguida caiu inanimado no chão. A barda respirou 
                                aliviada, cancelando a magia e agradecendo à Senhora 
                                dos Cabelos de Fogo, enquanto seu irmão alçava 
                                vôo em direção à jovem.       “Aila, 
                                como... chegou até aqui? Como descobriu onde eu 
                                estava?”“Ela veio 
                                comigo, Alexander Ilindiel, paladino de Torm.”, 
                                falou sem esperar a resposta da barda, e em um 
                                tom repentinamente frio. Tornando o olhar para 
                                a jovem, continuou: “Seja breve com suas despedidas.”.
 “Despedidas...? 
                                Aila, do que este demônio está falando?”
 “De-demônio?”, 
                                gaguejou a jovem, estarrecida.
 “Ela virá 
                                comigo, paladino.”, a voz firme e seca da erynie[1] 
                                cortava os ouvidos de Alex. “Serão concedidos 
                                a ela os poderes para fazer a justiça que lhe 
                                foi negada.”.
 “E você vem 
                                me falar de justiça, criatura infernal? Justamente 
                                você?”, aumentou o tom de voz, e levou o olhar 
                                para a sua irmã. “E você, onde estava com a cabeça 
                                quando ouviu as palavras dessa mulher? O que deu 
                                em você, Aila?”.
 “Você não 
                                vê, Alex?!”, gritou a barda, em desespero. “Eu 
                                não sabia de nada! E eu não posso discernir o 
                                mal em alguém apenas com um olhar! Suponho que 
                                para você, paladino, tivesse sido mais 
                                fácil! Além do mais... eu...”, sua voz sumia enquanto 
                                sentia a garganta apertar pelas lágrimas sufocadas.
 “Agora é tarde. 
                                Ela não poderá quebrar o Pacto que fez comigo.”, 
                                falou a erynie “Aila terá as recompensas conforme 
                                o acordo: poderá fazer justiça a quem a matou, 
                                e será capaz de resolver os problemas terrenos 
                                pelos quais pereceu. Para tanto...”.
 “Eu não acredito 
                                que você fez isso, Aila!”, explodiu Alexander, 
                                desesperado. “Acha que essa é a verdadeira forma 
                                da justiça? Acha que é assim que se faz o bem, 
                                barganhando com demônios?!”.
       A 
                                barda não conseguia sequer falar. Agora havia 
                                entendido tudo perfeitamente, tão claro como a 
                                água. Sentia as pernas tremerem e o coração acelerado, 
                                principalmente por saber que não haveria volta. 
                                Em um impulso, abraçou o irmão, enquanto se policiava 
                                para não chorar. Desatento a isso, ele correspondeu 
                                ao abraço, enquanto sussurrava:       “Eu 
                                não acredito, Aila. Minha irmã, como pôde? Como? 
                                Por quê?”“Então essas 
                                serão suas últimas palavras a sua irmã, Alexander 
                                Ilindiel?”
 “Eu tenho 
                                todo o direito de passar um sermão na minha irmã, 
                                demônio! Cale-se!”
 “É assim que 
                                você quer que ela se lembre de você, paladino?”
       Soltando-se 
                                do abraço do irmão, Aila levantou o rosto, encarando-o 
                                com o par de olhos violetas banhados em lágrimas.       “Eu 
                                também fiz isso por você, Alex.”“Venha, Aila.”, 
                                chamou a erynie. “Quanto a você, paladino, espero 
                                não vê-lo nunca mais.”
 “O mesmo não 
                                posso dizer de você, demônio. E Aila, eu farei 
                                o que for necessário para trazer paz à sua alma.”
       A 
                                erynie segurou a barda pelo braço, desaparecendo 
                                logo em seguida. Ainda tentando digerir o que 
                                aconteceu, Alexander deixou-se cair sentado, sentindo 
                                o rosto ser aquecido por lágrimas furtivas, enquanto 
                                dizia:       “ 
                                ... nem que isso custe a minha vida.”       Enquanto 
                                caminhava na direção de uma grande torre de brilho 
                                metálico, Aila sentiu novas lágrimas escorrerem 
                                pelo seu rosto. As últimas palavras que ouvira 
                                de Alex ainda ecoavam-lhe na mente:       “Eu 
                                farei o que for necessário para trazer paz à sua 
                                alma.”       Em 
                                outras palavras, ele seria capaz de matá-la, se 
                                preciso fosse.       “Entre, 
                                Aila.”       Se 
                                não fossem as circunstâncias, a visão seria impressionante. 
                                A grande torre era completamente feita de metal 
                                — as paredes, o chão, as escadas. As altas e opressoras 
                                paredes incandescentes mostravam-se praticamente 
                                intransponíveis. Estátuas de metal, das mais variadas 
                                temáticas, decoravam o lugar, que também trazia 
                                inscrições em baixo relevo, brilhando incandescentes.       Andaram 
                                até um lance de escadas que desciam em espiral, 
                                dando em outra porta de metal maciço, entalhada 
                                com motivos infernais. Imaginava a quantidade 
                                de sortilégios que deveriam proteger aquele lugar, 
                                desencorajando qualquer possibilidade de fuga. 
                                Desceram por vários andares, e na maioria deles 
                                Aila pôde reconhecer claramente algumas armadilhas 
                                mágicas. E se mesmo seus olhos destreinados puderam 
                                notar, quantas deveriam ter?       “Nova 
                                serva?”       A 
                                voz era grave e profunda, e a barda não deixou 
                                de sentir repulsa quando viu quem a emitia. Era 
                                também um demônio daquela espécie, embora possuísse 
                                asas das mais negras possíveis. Tinha braços e 
                                pernas fortes, e sua pele era repleta de cicatrizes 
                                — algumas tão antigas que se mostravam esbranquiçadas 
                                pelo tempo. Nos dedos brilhavam anéis vários, 
                                e um par de braceletes adornava os braços fortes. 
                                Ela caminhou sem cerimônias na direção da barda, 
                                que instintivamente recuou. A acompanhante assentiu 
                                em silêncio, afastando-se da jovem. A erynie de 
                                asas negras examinava a barda atentamente, olhando 
                                cada detalhe de sua anatomia.       “Esquálida 
                                e patética... venha comigo.”       Desceram 
                                mais um lance de escadas, e Aila pôde finalmente 
                                vislumbrar o que imaginava ser o inferno em um 
                                só momento: pessoas acorrentadas às paredes, algumas 
                                gemendo sem forças, e outras sequer pareciam respirar. 
                                As paredes eram decoradas com atrocidades das 
                                mais diversas, e a jovem não conseguia desviar 
                                o olhar. Sendo puxada, a barda teve os pulsos 
                                envoltos por algemas grossas e enferrujadas. A 
                                cada momento, a certeza de que percorria um caminho 
                                sem volta apunhalava seu coração.       Logo 
                                apareceram outras erynies, que a despiram sem 
                                a menor cerimônia. Os presos olhavam curiosos, 
                                enquanto outros agradeciam a algum deus por aquilo 
                                não estar acontecendo com eles. Vertiginosamente, 
                                Aila olhou por toda a sala, desejando alguém que 
                                pudesse ajudá-la. Cercada de criaturas que não 
                                conhecia e diante de um destino nefasto, se sentiu 
                                completamente sozinha. Entre sussurros, fez uma 
                                prece de perdão.       Sentiu-se 
                                sendo levantada, e escutou o barulho de correntes 
                                sendo movimentadas por um tosco sistema de roldanas. 
                                Completamente desnuda de corpo, sentia-se cada 
                                vez mais desprovida de espírito. Conforme subia, 
                                sentiu arranhões no pulso, causados pelas algemas, 
                                enquanto filetes de sangue escorriam por seus 
                                braços, fazendo um contraste irônico: sangue vermelho 
                                em carne branca. Fechou os olhos, até que ouviu 
                                as correntes pararem.       Olhando 
                                para baixo, viu um grande poço circular, que borbulhava 
                                algo parecido com lava. Sentiu-se sendo baixada 
                                lentamente, e então discerniu o que a esperava 
                                lá em baixo: sangue fervente, borbulhante. Em 
                                desespero, começou a se debater, mesmo que parte 
                                de si soubesse ser em vão. Ouviu pequenas risadas 
                                entre os flagelados, assim como as erynies. Seus 
                                pulsos se feriam cada vez mais, embora fosse a 
                                última coisa na qual pensasse agora. Queria se 
                                livrar daquilo; queria, de um modo infantil, estar 
                                sonhando e acordar assustada, suando. Entretanto, 
                                aquilo era real – bem real. Logo ela poderia provar.       Seus 
                                pés tocaram o líquido quente — e ela gritou. Dobrou 
                                os joelhos, enquanto as correntes continuavam 
                                baixando sonoramente. As risadas das erynies ecoavam-lhe 
                                nos ouvidos, enquanto as palavras do irmão retumbavam 
                                em sua mente. Não era aquilo o que de fato queria 
                                — era tão errado assim desejar um pouco de justiça? 
                                Será que evitar o conflito entre duas raças, e 
                                um grande derramamento de sangue, valeria tão 
                                alto preço?       Seu 
                                grito ecoou mais uma vez, quando, mesmo encolhida 
                                e com o corpo já dolorido, sentiu o sangue fervente 
                                tocar-lhe a pele novamente. Com os braços esticados 
                                e o corpo reteso há tanto, não conseguiu resistir 
                                — mergulhou as pernas até a altura do joelho, 
                                conhecendo o significado de dor lancinante. 
                                O sangue quente machucava a pele, pele que sabia 
                                ser alma, e Aila desejava que fosse uma dor ainda 
                                maior, e que lhe tirasse a vida de uma vez. Pensou 
                                em quantas pessoas não haviam passado por aquele 
                                tormento, em quantos gritos já não haviam ecoado 
                                naquela sala.       As 
                                risadas diminuíram, mas não os gritos da barda. 
                                Sentia a corrente estremecer a cada vez que a 
                                corrente balançava, descendo lentamente, assim 
                                como podia sentir as batidas desesperadas do seu 
                                coração. De modo vão, tentava agarrar-se às boas 
                                lembranças: os momentos bons com Ahlan, seu tutor 
                                e amante; do abraço cálido de Vanir, aquele elfo 
                                bondoso por quem guardava tanto carinho. O que 
                                eles pensariam quando soubessem daquilo?       Submersa 
                                até a cintura, ainda tinha forças para se debater, 
                                embora quisesse ter forças para se libertar, ou 
                                não mais tê-las e acabar logo com aquele sofrimento. 
                                A dor era terrivelmente constante. A garganta 
                                secava, mas não parava de gritar, e nem poderia, 
                                pois a dor não deixava. A corrente baixava cada 
                                vez mais, emergindo-a lentamente, e chacoalhares 
                                metálicos soavam violentos, acompanhando os gritos 
                                desesperados da jovem.       Apesar 
                                de costumadas àquele espetáculo, a vã esperança 
                                demonstrada perturbava algumas erynies. Talvez 
                                porque fizesse vir à tona memórias de quando aquilo 
                                aconteceu a elas. Outras olhavam curiosas, talvez 
                                pensando que havia algo de irônico em ver alguém 
                                de sangue celestial ser transformado em demônio.       Aila 
                                prendeu a respiração, e fechou os olhos, conforme 
                                sentiu-se afundar completamente no poço de sangue. 
                                Tentava levantar o rosto, mas graças à dor, já 
                                não conseguia fazê-lo. Sentiu o corpo completamente 
                                submerso, enquanto ainda tentava forçar os braços 
                                para elevar-se acima do nível do poço. Em vão.       Logo 
                                seu peito começou a doer, e ela sentiu que precisava 
                                de ar. Sabia o que iria acontecer, mas não pôde 
                                resistir e relaxou os pulmões, expirando toda 
                                e qualquer esperança de vida. Abriu os olhos e 
                                viu apenas o vermelho forte diante de si, e sentiu-os 
                                ardendo. Tentou gritar, e além de ter seu grito 
                                abafado, sentiu o gosto do sangue quente e viscoso 
                                descendo pela garganta, queimando-lhe as entranhas.       A 
                                corrente foi parando lentamente, até não mais 
                                se movimentar.       Silêncio 
                                no calabouço.       As 
                                roldanas foram mais uma vez ativadas, e logo a 
                                corrente foi subindo, mostrando uma Aila de tez 
                                bem mais pálida, cabelos loiros encharcados de 
                                sangue, e asas escarlates a brotarem do alto das 
                                costas, com sangue pingando por toda a sua extensão, 
                                conforme se abriam lentamente.       Nenhum 
                                movimento.       Até 
                                que ela inspira sonoramente. Renascida.       Abriu 
                                os olhos, outrora de um violeta misterioso, possuindo 
                                agora um brilho estranho, capazes de se destacarem 
                                sozinhos na escuridão. Da boca vertia um sorriso. 
                                Maligno. Cruel. Demoníaco.
                                [1] 
                                 Erynie: o termo 
                                erynie vem das criaturas mitológicas erínias, 
                                também chamada pelos romanos de Fúrias. 
                                Eram deusas horríveis, e tinham a função 
                                de punir os mortais por crimes de sangue entre 
                                famílias. E conforme sua influência 
                                religiosa aumentava na sociedade, sua imagem foi 
                                ligada ao Inferno.
                                                                
 Sobre o Autor
 
                                 
                                  |  Allana Dilene
 |  Allana Dilene 
                                mora em João Pessoa, Paraíba, e 
                                joga RPG desde os 12 anos. Conheceu os Últimos 
                                Dias de Glória por acaso, enquanto 
                                procurava sobre alguns monstros de D&D. Achou 
                                a idéia do site muito interessante e resolveu 
                                ajudar. Formou-se em Letras na Universidade Federal 
                                da Paraíba, estuda ocasionalmente e adora 
                                literatura. |