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                |  Por Louis Bear
 |   Os 
            Últimos Dias de Glória - Contos 
 
   Por uma noite longe da solidão 
 10 de Kythorn de 
              1364Norte de Cormyr
 Algum lugar da orla da floresta de Cormanthor
        Iorek 
              moveu lentamente a mão em direção à 
              sua face, enxugando de maneira violenta uma lágrima com a 
              palma de sua mão, a aspereza desta ferindo seu rosto curtido 
              de sol e sujo com a poeira da estrada.Chutou sem animo 
              alguma terra em direção à pequena fogueira, 
              onde tinha preparado uma refeição bem simples. As 
              chamas se apagaram facilmente, mas em sua mente a imagem de uma 
              outra fogueira, deixada lá atrás, onde antes morava 
              com sua amada Gleena, teimava em não se apagar.
 O cavalo (seu 
              único companheiro de viagens) pastava a poucos metros dele, 
              aparentemente tranqüilo, o que era um bom sinal: estavam seguros! 
              Inúmeras vezes o animal demonstrara certa inquietação 
              e ele aprendera a confiar em seu amigo, pois na grande maioria das 
              vezes eles se viram em situações que só não 
              eram piores devido aos avisos de sua montaria.
 Resignou-se 
              a cavalgar mais alguns quilômetros rumo ao norte, seguindo 
              a orla da floresta de Cormanthor e tentar encontrar um lugar seguro 
              para passar a noite... A noite! Já passara por poucas e boas 
              em noites nas proximidades de Cormanthor... Aquele lugar fervilhava 
              de criaturas noturnas, e ele ainda não se acostumara com 
              a idéia de se tornar um notívago para melhor lidar 
              com estas situações... Nem tão pouco seu cavalo!
 Lembrou-se da 
              última vez em que havia dormido em uma cama confortável, 
              ao lado de sua amada, dois dias antes de sua morte. A dor da perda 
              parecia crescer a cada dia, sem deixar espaço para mais nada 
              em seus pensamentos. E a cada passo que dava, cada bocado de comida 
              que mastigava, cada flecha que atirava contra as criaturas nojentas, 
              tudo parecia se passar num pesadelo que teimava em não findar.
 Montou Ramsay 
              e colocaram-se a caminho, arco e flechas na mão e cabeça 
              baixa, tentando esconder dos deuses as lágrimas que rolavam 
              por seu rosto sujo e molhavam a barba negra e cheia.
 * * *       Ao 
              longe, por detrás de algumas árvores, enxergou uma 
              tênue fumaça azulada que subia de vários pontos 
              rumo às nuvens que anunciavam uma chuva não muito 
              forte antes do anoitecer.Pela primeira 
              vez em quase dois anos, Iorek decidiu aproximar-se da pequena vila, 
              de onde subia aquela fumaça aconchegante das chaminés, 
              e descobrir se existia alguma espécie de taverna para beber 
              um gole de vinho e, quem sabe, dormir em um lugar seguro e confortável 
              novamente.
 Ramsay ia a 
              passos lentos, enquanto ele observava a vegetação 
              ao redor, curioso em saber que tipos exóticos de plantas 
              deveriam existir por entre os conhecidos carvalhos e faias, já 
              que ele se deslocava cada vez mais para norte de sua cidade natal, 
              Hutail, onde conhecia, se não completamente, com certeza 
              uma grande parte da flora que a cercava.
 A exuberância 
              da vegetação o hipnotizou por um bom tempo. Seu cavalo 
              ia devagar, como se entendesse os desejos do dono. Flores da época 
              brotavam nos arbustos que em breve estariam carregados de toda a 
              sorte de frutinhas vermelhas de odores fascinantes e paladares delicados. 
              Em cascatas verdes algumas espécies de samambaias encobriam 
              a visão como uma cortina semi-aberta para a escuridão 
              da mata fechada que se espalhava muito além da imaginação 
              de Iorek.
 Subitamente 
              ele fez com que Ramsay parasse. Guardou a flecha que trazia pronta 
              na corda do arco e atravessou este em suas costas. Desceu vagarosamente 
              de sua cela e deu uns quatro ou cinco passos em direção 
              à orla da floresta, parando com o rosto a poucos centímetros 
              de uma flor com aspecto de campânula. Suas folhas lanceoladas, 
              três delas, de um vermelho vivo, despontavam na base do caule. 
              Uma Tulipa, tão perfeita em suas formas que deveria ter sido 
              feita pelas próprias mãos de Mieliki.
 Como era perfumada! 
              E como era doloroso olhar para aquela perfeição da 
              natureza e lembrar-se de que era esta a flor preferida de sua Gleena.
 Podia se lembrar 
              com clareza de uma vez em que se embrenhara na mata fechada apenas 
              para colher algumas delas e presenteá-las à sua amada. 
              E de como terminara por ganhar um jardim imenso e verdejante em 
              frente à janela de seu quarto, presente de um senhor élfico. 
              Glenna, os olhos marejados de lágrimas, havia retribuído 
              o presente com seus beijos e carinhos. E não poderia existir 
              para Iorek pagamento mais a altura, por qualquer esforço 
              que pudesse fazer por ela.
 Ele a amara 
              intensamente cada segundo de suas vidas em conjunto. Desde que descansara 
              os olhos sobre ela pela primeira vez, anos atrás, ele teve 
              certeza de que a amava e de que moveria céus e terras para 
              ter seu coração e que, depois de alcançar suas 
              graças, empenhar-se-ia em dobro para fazê-la feliz.
 Sim, Iorek o 
              fizera. Conseguira conquistar aos poucos sua confiança, depois 
              seu amor. Haviam sido felizes como duas crianças, aquelas 
              criaturinhas que precisavam tão pouco para sorrir. Ele a 
              fizera sorrir incontáveis vezes. Arrancara lágrimas 
              de felicidade e paixão de sua Gleena. Dentro de seus limites 
              como caçador dera a ela uma vida de rainha. Novas lágrimas 
              de dores antigas afloraram dos olhos dele. Sua mão colheu 
              a flor num gesto de reverência e ele pronunciou em voz baixa 
              um agradecimento pela dádiva. Era para Corellon a sua prece.
 Subiu novamente 
              nas costas de Ramsay e seguiu caminho, o arco novamente nas mãos 
              e a flor presa em uma reentrância de sela. Pouco tempo depois 
              já dava pra ver as casas, acolhedoras e alegres, por entre 
              os troncos, e sentir o cheiro de boa comida invadir suas narinas. 
              Mais alguns passos e estaria de volta à civilização 
              que abandonara sem remorsos tanto tempo atrás.
 Subitamente, 
              duas flechas cravaram-se em frente a Ramsay, que se ergueu nas patas 
              traseiras, assustado. Iorek saltou de sua sela e tencionou a corda 
              do arco, procurando com os olhos hábeis de caçador 
              o autor dos disparos e pronto para atirar assim que tivesse um vislumbre 
              de seus atacantes.
 -- Solte a arma, 
              viajante, ou seremos obrigados a abatê-lo sem piedade! - A 
              voz humana soou autoritária e sem brechas para um dialogo. 
              Iorek depositou o arco no chão e amaldiçoou mentalmente 
              sua estupidez. Onde diabos estava com a cabeça que esquecera 
              da regra numero um de sobrevivência? Nunca deixe de prestar 
              atenção à sua volta - gritava sua mente, agora 
              totalmente desperta e pronta para uma reação em frações 
              de segundos. - Assim está melhor - retrucou a voz. - O que 
              deseja por estas bandas, viajante?
 -- Apenas um 
              bom prato de comida e uma cama para descansar o corpo e a mente, 
              cansados de uma longa jornada - respondeu ele em bom tom. - Onde 
              está a velha hospitalidade do norte?      Agora 
              recebem com flechas os seus visitantes?
 -- Precaução, 
              cavalheiro, nada mais que isso - respondeu um rapaz saindo de trás 
              de um arbusto armado com uma pequena espada. - O que temos aqui? 
              Onde roubou esse cavalo e essas belas armas?
 -- Roubei? Estas 
              armas me pertencem, assim como o meu cavalo, Ramsay - que audácia! 
              Acusá-lo de ser um ladrão! Era demais para sua cabeça! 
              - De onde tirou a idéia de que eu roubei estas coisas?
 -- Companheiro, 
              alguém que tenha essa aparência e que cheire tão 
              mal, com certeza não tem ouro o suficiente nem para pagar 
              um banho decente! - Os outros homens se aproximaram e riram, divertindo-se 
              com a situação.
 Por todos os 
              demônios! O homem deveria estar falando a verdade! Quando 
              tinha sido a última vez que tomara um banho e fizera a barba? 
              Nem se lembrava! E devia ter sangue de goblins seco em suas roupas 
              e pele! Onde estivera com a cabeça?
 -- Ó, 
              deuses! Você tem razão! Eu estou fedendo! - E sorriu 
              amigavelmente. Colocou a mão lentamente num bolso, para que 
              eles não suspeitassem de algum tipo de hostilidade, e tirou 
              de lá um punhado de moedas. - Escutem! Não podemos 
              discutir amigavelmente sobre os motivos de meu estado depois que 
              eu tomar um bom banho e me barbear? Podemos fazer isso tomando um 
              gole de vinho! Por minha conta, certo?
 A perspectiva 
              de beber de graça e de ouvir estórias de um forasteiro 
              pareceu aplacar os ânimos, mas o rapaz armado com a espada 
              não dava mostras de que se venderia por tão pouco.
 -- Se você 
              concordar em entregar todas as suas armas e seu cavalo, até 
              que tenhamos certeza de que não é um ladrão, 
              podemos arranjar o banho, o barbeiro e todo o vinho que você 
              puder pagar - disse ele. - Caso contrário, dê meia 
              volta e siga seu caminho, viajante!
 Sem pensar duas 
              vezes, Iorek soltou o cinto com suas espadas e passou para um dos 
              homens à sua volta. Abaixou-se, pegou o arco e passou para 
              outro. Mas não fez qualquer movimento em direção 
              ao cavalo.
 -- Ele não 
              obedecerá a ninguém mais, é melhor que eu o 
              leve para onde vocês quiserem - falou Iorek.
 -- Tolice - 
              retorquiu o rapaz, que aparentemente era o líder. - Se ele 
              realmente não me acompanhar será a prova de que lhe 
              pertence - e foi pegando as rédeas para levá-lo embora.
 Ramsay não moveu um só músculo e alguns dos 
              homens ensaiaram risadas mal contidas. Iorek sorriu e deu um passo 
              para o lado, olhando seu cavalo bem nos olhos.
 O pobre sujeito, 
              para não fazer feio diante de seus companheiros, deu uma 
              esticada mais violenta nas rédeas e em resposta Ramsay colocou-se 
              nas patas traseiras, puxando violentamente o infeliz para cima e 
              derrubando-o como se fosse um boneco de pano.
 A platéia, 
              às gargalhadas, cometeu o erro de não se afastar, 
              e uma infinidade de coices, cabeçadas, mordidas e patadas 
              foram desferidas em todas as direções, pondo a nocaute 
              a grande maioria dos homens.
 -- Ôah! 
              Ramsay! - Iorek, sorrindo e ileso no meio da confusão, passou 
              a mão no pelo de seu amigo, tranqüilizando o animal 
              e ajudando o rapaz que tinha sido atingido primeiro. - Eu bem que 
              avisei, se eu tivesse feito uma aposta, tomaria meu banho, faria 
              minha barba e sairia daqui embriagado com todo o vinho que vocês 
              pudessem me pagar! E minha bolsa continuaria cheia! - Tomou as rédeas 
              e começou a caminhar. - Vamos, o vinho fará com que 
              esqueçam a dor de terem sido derrotados tão facilmente 
              por um cavalo!
 Sorrindo ainda, 
              Iorek pensou com desdém que teria sido muito fácil 
              ele mesmo ter dado cabo de todos aqueles idiotas, mas agindo assim 
              estaria se privando do prazer a muito esquecido e tão desejado 
              de dormir em uma cama quente e vestir uma roupa limpa. Seria uma 
              estadia cara, com tantos para beber de seu vinho, mas ele teria 
              outra companhia que não a do seu cavalo por uma noite, e 
              ele ansiava tanto por isso que daria até sua ultima moeda 
              para que isso acontecesse.
 * * *       Acordou 
              de repente respirando com dificuldade, o ar teimando em não 
              ficar nos pulmões. Uma grande confusão em sua cabeça, 
              causada por um sono tão profundo e anormal, impediu que ele 
              entendesse de imediato o que acontecia. Aos poucos foi recobrando 
              a lucidez. As roupas totalmente encharcadas grudavam-se ao seu corpo 
              dolorido.Abrindo um pouco 
              os olhos, que pareciam querer se afundar em suas órbitas 
              de tão irritados, Iorek pôde ver um grupo de homens 
              e mulheres ao seu redor, alguns deles munidos de baldes agora vazios, 
              e sorrisos de escárnio nas faces.
 -- Acorde! Acorde, 
              bastardo! - Gritou Udrow, o jovem que no dia anterior tentara dominar 
              seu cavalo e levara uma surra. - Está na hora de ir andando, 
              vagabundo!
 Iorek tentou 
              mentalmente por ordem às coisas: havia entrado na vila e 
              tomara um banho. Depois fizera a barba. A ultima coisa de que se 
              lembrava é de estar sentado numa taverna com mais da metade 
              dos vilões e ter pedido uma rodada de vinho para todos, por 
              sua conta. Então, começou a beber. Era depois disso 
              que tudo estava confuso! Ele era forte para as bebidas, mas não 
              se lembrava de ter chegado nem ao segundo copo. Drogado!!! Ele havia 
              sido drogado!
 -- Porque diabos 
              vocês me... - começou a perguntar. Mas não teve 
              tempo de terminar a frase. Com um chute em sua perna, Garrick, um 
              outro que estava na confusão do cavalo, fez com que ele se 
              calasse.
 -- Siga seu 
              caminho, que este não é um lugar para vagabundos - 
              vociferou Udrow, gotículas de saliva se espalhando pelo ar 
              e voando na direção de Iorek.
 -- Mas o que... 
              - outro chute, desta vez de um outro que não lembrava o nome.
 -- Não 
              está ouvindo, miserável? - As pessoas ao seu redor 
              riram, divertidas pelo espetáculo. - Siga seu caminho e não 
              volte a esta vila, ou terá que merece, seu rato!
 -- Calma! Estou 
              indo! - e colocou-se de pé, com dificuldade. O cabelo molhado 
              caiu na sua face em bolos pesados e impediu momentaneamente sua 
              visão. Pego desprevenido, foi empurrado na direção 
              de um pequeno córrego, que era a fronteira leste da vila. 
              Escorregou e foi parar no meio do riacho, sentado. - Hei! Minhas 
              coisas! Meu cavalo!
 -- Coisas? Cavalo? 
              Do que está falando? - perguntou divertido um dos vilões. 
              - Falando desse jeito nem parece que é um pobre miserável 
              que veio pedir esmola em nossa vila! - e todos gargalharam com gosto.
 Então 
              era isso! Fora drogado e depois destituído de todos os seus 
              bens! Suas espadas, seu arco, sua armadura, seu cavalo... e o pior: 
              as poucas lembranças que tinha de sua Gleena! E agora eles 
              o escorraçavam para poder dividir entre si os espólios!
 -- Tudo bem! 
              Eu estou indo, certo? - Iorek se levantou, olhou ao redor e viu 
              que seus gentis hospedes estavam armados. Deu alguns passos para 
              trás, mantendo os olhos bem grudados nos seus agressores, 
              afim de não levar uma punhalada pelas costas. Já que 
              haviam agido daquela forma com ele, nada impediria que eles lhe 
              acertassem uma flecha enquanto se afastava.
 Depois de se 
              afastar um bom pedaço aos tropeções, virou-se 
              e correu como um louco, mata adentro, desviando dos galhos mais 
              baixos das arvores e tentando colocar entre ele e aqueles loucos 
              o maior pedaço de chão que pudesse.
 Correu por vários 
              minutos, sem parar nem por um segundo. Quando teve a certeza de 
              que estava seguro novamente, parou. E só então percebeu 
              onde estava. Várias construções semi destruídas 
              se erguiam ao seu redor, não muito distantes dele. O musgo 
              e as trepadeiras tomando conta de tudo, deixando claro que aquilo 
              não era uma coisa recente. Pórticos sombrios e buracos 
              nas paredes, que outrora teriam sido janelas com belos vitrais, 
              espreitavam silenciosos. Tudo parecia estranhamente quieto.
 Definitivamente 
              não era um bom lugar para estar só, mesmo que ele 
              não fizesse idéia de onde estava com exatidão. 
              Sabia que era uma ruína. E ruínas eram esconderijos 
              prediletos de toda a sorte de criaturas.
 Iorek levou 
              a mão automaticamente à cintura, mas não encontrou 
              a espada. Olhou em volta e não tardou a encontrar um galho 
              velho para usar como bastão. Era melhor estar prevenido contra 
              o que pudesse estar dormindo por ali.
 A indecisão 
              de o que fazer levou um longo tempo. Estava com a cabeça 
              doendo, os pensamentos confusos e com um mal estar dos diabos! Ele 
              olhava em volta, mas a visão estava turva, impedindo que 
              ele observasse mais detalhadamente os sinais à sua volta.
 Resolveu se 
              afastar dali até que seus sentidos estivessem novamente em 
              ordem, então voltou cuidadosamente por onde viera, até 
              estar a uma distância segura daquelas construções 
              arruinadas.
 Olhando em volta 
              e para cima, descobriu uma arvore com galhas grossas e cheias de 
              folhas, um ótimo esconderijo onde poderia dormir tranqüilamente 
              por algumas horas sem precisar se preocupar com sua segurança. 
              Afinal de contas, Ramsay estava na vila, e não poderia avisá-lo 
              de qualquer perigo que surgisse.
 Teve algum trabalho 
              para subir na arvore, seus braços e pernas se recusavam a 
              trabalhar em conjunto, e ele se perguntou como conseguira correr 
              tanto sem ter se esborrachado no chão. Medo! Era essa a resposta!
 Depois de subir 
              um bom pedaço, descobriu uma pequena plataforma cercada de 
              galhos mais finos, onde teria cobertura e segurança de não 
              acordar em queda livre pouco antes de se estatelar no chão. 
              Olhou em volta e marcou as posições mentalmente, para 
              o caso de ter que agir depressa e sem tempo para pensar. Quando 
              virou a cabeça pra baixo e olhou o caminho de volta, sorriu 
              e pensou que se viesse a cair da cama, jamais acordaria em queda 
              livre: acordaria ao se chocar com o primeiro galho, e sentiria uma 
              infinidade de pancadas no decorrer de sua queda, até a pancada 
              final, nas raízes da arvore, que se projetavam para fora 
              da terra num emaranhado que partiria seus ossos em milhões 
              de pedacinhos bem pequenos... estava realmente bem arranjado!
 Com estes pensamentos 
              ele adormeceu.
 * * *      Acordou 
              assustado, mas sem mover um só músculo, respirando 
              lenta e profundamente. Já era noite, e ele se surpreendeu 
              por ter dormido tanto, quando costumava dormir apenas algumas poucas 
              horas por dia.Silêncio.
 Tudo estava 
              quieto demais... nada de ruídos noturnos, nada de barulho 
              de brisa nas folhas... tudo quieto como se o tempo tivesse parado.
 Um estalo.
 Iorek aguçou 
              seus sentidos e esperou. Havia algo de errado.
 Virou a cabeça 
              na direção do chão, vagaroso como um verme, 
              e olhou.
 A visão 
              foi aterradora!
 Uma horda de 
              seres imundos se movia lentamente em direção oeste, 
              tão silenciosos que Iorek chegou a pensar que eram fantasmas. 
              As mãos estavam vazias e tocavam o solo, mas nos cintos estavam 
              pendurados todos os tipos de armas, e nas costas eles traziam aljavas 
              abarrotadas de flechas.
 A luz de Selune 
              se derramava entre as folhas e iluminava suas faces horrendas, dezenas 
              de bocas arreganhadas em sorrisos desumanos e centenas de olhos 
              frios e decididos.
 Uma invasão!
 Eles iam invadir 
              e saquear a vila que o tratara tão mal. Parecia castigo dos 
              deuses! Por Mieliki, eles teriam o que mereciam!
 Mas então 
              ele se lembrou: Ramsay! Por todos os demônios! Ele seria aprisionado 
              por aquelas criaturas nojentas!!! Não podia deixar que isso 
              acontecesse! Ele ia dar um jeito de tirá-lo daqueles humanos 
              nojentos, e isso seria bem fácil. Mas orcs? Eles eram muitos 
              e com certeza levariam seu cavalo para lugares horrorosos e infestados 
              de bestas sanguinárias. Ele não daria um tostão 
              pela vida de seu amigo, se eles o capturassem. Teria que agir rápido!
 Esperou pacientemente 
              que toda a horda passasse por ele, então desceu das galhas 
              altas para o chão. Seria um massacre! Eles eram muitos!
 Iorek correu como um louco, dando uma volta monumental para se desviar 
              dos orcs e conseguir atingir a vila em outro ponto, de preferência 
              do outro lado, onde estava o curral e com certeza o seu amigo. Fez 
              tanto barulho que com certeza despertaria a curiosidade das bestas, 
              e talvez pudesse atrasá-las um pouco.
 Atravessou ao 
              norte o riacho que era mais ao sul a fronteira leste da vila. As 
              roupas molhadas atrasaram um pouco sua corrida, mas ele se manteve 
              firme, e atingiu o outro lado da vila em pouco tempo.
 Parado, o coração 
              bombeando sangue nos seus ouvidos, Iorek olhou em direção 
              às luzes da vila. Parecia que tudo estava calmo por lá... 
              por pouco tempo, com certeza!
 Estava decidindo sua tática quando ouviu um barulho que vinha 
              de trás, de onde ele mesmo tinha vindo. O coração 
              parou por um instante, o pânico de ser pego desprevenido fazendo 
              com que suas mão começassem a suar. Voltou-se rapidamente 
              e viu: três orcs com espadas curvas olhavam pra ele de trás 
              de um aglomerado de troncos, as bocarras abertas e saliva escorrendo 
              pelos cantos, brilhando sob a luz de Selune.
 -- Perfeito! 
              Estou bem arranjado por aqui, como se já não tivesse 
              um monte de problemas! - Iorek sabia exatamente o que ia acontecer: 
              eles estariam os três sobre ele em segundos, então, 
              não tinha tempo para pensar. E ainda estava desarmado! Onde 
              diabos tinha deixado aquele bastão?
 Rosnando e praguejando em sua língua ininteligível, 
              os três investiram com tudo que tinham, já que o humano 
              que combatiam não era pequeno: devia ser quase duas vezes 
              mais alto que o maior deles.
 Iorek deu um 
              salto para a esquerda, investindo contra o flanco do que estava 
              mais perto. Segurou com força o braço com a mão 
              direita, frustrando seu ataque, e puxou com força a criatura, 
              que ficou na linha de fogo do que aparentemente era o líder.
 Este, pego de surpresa pela rapidez de Iorek enquanto desferia um 
              golpe furioso e sem técnica, amputou o braço de seu 
              companheiro de uma só vez, fazendo o ser guinchar como um 
              animal sendo morto a pauladas.
 Rapidamente, 
              Iorek puxou com a mão direita a espada do braço decepado 
              que segurava em sua mão, empunhando o mesmo com a mão 
              esquerda. Agora eles estavam de igual para igual! Duas armas contra 
              uma arma e um braço!
 -- Que belo 
              porrete eu tenho agora - gracejou ele.
 O terceiro ser, 
              que ficara para trás, cercou o flanco esquerdo de Iorek, 
              tentando alcançar suas costas e atingi-lo pela retaguarda, 
              mas foi frustrado por uma pancada desferida com o braço amputado 
              de seu comparsa.
 Dando um salto 
              para trás e um passo à esquerda, Iorek colocou-se 
              diante do orc atordoado e desceu violentamente a espada em diagonal 
              na direção de seu pescoço. A espada se cravou 
              até quase a metade do peito da criatura, e recusou-se a sair.
 Segurando o braço amputado pelo pulso com a mão direita, 
              já que agora não tinha espada, Iorek olhou furiosamente 
              para a ultima das criaturas. Sua respiração estava 
              normal. Sem demonstrar muito interesse pelo adversário ainda 
              de pé, soltou o braço amputado no chão e caminhou 
              calmamente em sua direção, os olhos fixos e furiosos 
              eram o único sinal de que ele não estava realmente 
              tranqüilo.
 O Orc arreganhou 
              mais os dentes com intenção de assustar seu oponente, 
              mas tudo que conseguiu foi perder um tempo precioso, e em segundos 
              Iorek já segurava seu braço direito pelo pulso, tão 
              apertado que foi impossível para o ser não guinchar 
              de dor. A pressão aumentou aos poucos obrigando-o a soltar 
              sua arma.
 Os olhos se 
              encontraram, homem e monstro face a face.
 Sem nenhuma 
              demonstração de piedade, Iorek torceu o braço 
              até fazer com que o monstro se ajoelhasse, e continuou torcendo 
              até que sentiu o braço estalar com força. O 
              grito da criatura foi muito mais baixo do que ele imaginou que seria. 
              Abaixou-se e catou a espada. Levantou a mão e desferiu um 
              único golpe.
 A criatura tombou 
              sem vida.
 Virando as costas, 
              Iorek se colocou a caminho da vila. Não tinha tempo a perder, 
              seu amigo precisava de ajuda, e ele tinha que reaver seus pertences.
 * * *      Tudo 
              estava absurdamente calmo. O silêncio era tão grande 
              que oprimiu Iorek. O típico silêncio antes do terremoto.Somente os passos 
              de uma sentinela que vagava sem rumo pela vila.
 Ele podia ver 
              a sentinela rondando as casas mais ao sul, distante o suficiente 
              para que Iorek não precisasse se preocupar muito em fazer 
              silêncio.
 A uns vinte 
              metros ficava o celeiro onde ele tinha colocado seu cavalo. Aparentemente 
              ele estava desprotegido. E a casa de Udrow ficava bem próxima 
              desse lugar. Iorek tinha a impressão de que encontraria suas 
              coisas lá dentro.
 Fez um levantamento 
              rápido da situação do celeiro, descobrindo 
              que não ficava trancado, e que seu cavalo estava na mesma 
              baia que ele havia colocado. Ele preparou sorrateiramente o terreno 
              para libertá-lo, mas faria isso depois de invadir a casa 
              de Udrow e reaver seus pertences.
 Como um gato 
              na noite iluminada por Selune, foi em direção a casa 
              dele e escondeu-se atrás de uns barris de água. Ele 
              não teria trabalho de lutar. Os orcs o ajudariam nessa parte.
 -- Que ironia 
              do destino, hein camarada? - sussurrou para si com um sorriso. Esperou 
              pacientemente.
 E não 
              teve que esperar muito.
 A sentinela 
              nem soube exatamente como aconteceu. Urros foram ouvidos vindo de 
              todas as direções e o barulho de coisas se quebrando 
              e portas abrindo foram ouvidos por toda a vila. Em seguida Iorek 
              ouviu o tilintar de metal contra metal quando os homens se puseram 
              a combater a horda de invasores.
 Segundos depois 
              a porta da casa de Udrow foi aberta e ele saiu de lá com 
              sua pequena espada curta nas mãos e vestido de calções 
              e sapatos. O peito nu fez com que Iorek sentisse pena dele. Não 
              seria páreo para as flechas e espadas afiadas dos orcs.
 Quase imediatamente 
              à saída dele da casa, a porta foi fechada por alguém 
              lá dentro.
 -- Como previsto! 
              - comentou Iorek.
 Levantando-se 
              de seu posto de observação, ele caminhou lentamente 
              em direção a uma janela e empurrou. Ela cedeu sem 
              esforço e sem fazer barulho.
 -- Como previsto! 
              - repetiu ele em meio a um sorriso.
 Saltou para 
              dentro e deparou-se com um quarto vazio. A cama desfeita de casal 
              mostrava que Udrow estivera ali até poucos instantes atrás 
              com sua mulher, que agora deveria estar colocando algo para barrar 
              a porta da frente e faria o mesmo com a porta dos fundos e as janelas. 
                   Provavelmente 
              o quarto seria o último lugar a ser lembrado, o que lhe daria 
              tempo de revistá-lo em busca de suas coisas.
 Rapidamente 
              mas com atenção ele deu uma busca no quarto, mas tudo 
              o que achou foi seu cinto com as espadas. O troféu de Udrow, 
              com certeza. Colocou novamente na cintura e sacou sua espada curta. 
              Posicionou-se junto à porta e esperou.
 A porta foi 
              aberta e uma jovem passou correndo por ele. Só notou que 
              ele estava no quarto quando já fechava a janela. Teve um 
              sobressalto e virou-se para ver o que havia aberto a janela daquela 
              forma.
 Quando viu o 
              estranho forasteiro em seu quarto a jovem ensaiou um grito, mas 
              desistiu assim que viu a espada nas mãos dele.
 Iorek notou 
              que a jovem usava o anel de casamento que dera a Gleena. E que no 
              pescoço ela trazia a corrente com o símbolo de Mieliki 
              que ele dera de presente a ela no dia em que completaram um ano 
              de casados. Era o que ele mais buscava! As lembranças de 
              sua amada!
 -- A fita! Onde 
              está a fita? Vermelha? - perguntou ele.
 A mulher apavorada 
              apontou na direção de um baú aos pés 
              da cama. Perguntando-se o porque de não ter aberto este baú, 
              com a mão livre ele abriu a tampa e viu logo em cima a fita 
              de prender cabelos de Gleena. Pegou-a e colocou dentro da camisa.
 -- O anel e 
              a corrente! Devolva! - disse esticando a mão na direção 
              da pobre mulher.
 Ela se desfez 
              dos objetos tão rápido quanto os tinha pegado para 
              si.
 -- O arco? Onde 
              está? - a mulher apontou debilmente para a porta, dando a 
              entender que deveria estar em algum outro cômodo. - Vamos! 
              Venha comigo! Vamos buscá-lo!
 Segurando o 
              braço da mulher como toda a delicadeza, ele a conduziu até 
              a sala e ela lhe mostrou que o arco estava na parede, pendurado 
              ao lado da aljava abarrotada de flechas. Iorek pegou os dois e pendurou 
              nos velhos lugares tão conhecidos.
 -- Fuja para 
              a floresta! Aqui não é seguro! Eles são muitos 
              e vocês, poucos! Será um massacre! - disse ele em tom 
              de urgência. - Avise às outras que eles logo estarão 
              em cima de vocês. Eu estou indo libertar meu cavalo e fugirei 
              daqui como se o próprio Bane estivesse em meus calcanhares.
 A mulher deixou escapar um soluço, e logo depois chorou como 
              uma criança. Naquele estado ela lhe parecia tão frágil 
              e indefesa que ele esteve a ponto de desistir de Ramsay para defendê-la 
              dos orcs imundos. Mas o bom senso voltou e ele se lembrou de ter 
              visto aquela mulher rindo dele enquanto seu marido o escorraçava 
              da vila sem motivos.
 -- Pois bem... 
              então feche a porta assim que eu sair e use isso - ele lhe 
              entregou uma faca bem amolada que estava em seu cinto. - É 
              para você, e não para os orcs. Se eles entrarem aqui 
              eu a aconselho que tire sua própria vida. Nem quero imaginar 
              do que eles seriam capazes de fazer a uma pessoa antes de matá-la... 
              E dizendo isso ele deixou escapar uma lágrima. Ele também 
              não sabia os detalhes do que eles deviam ter feito à 
              sua Gleena antes de lhe tirar a vida.
 Abriu a porta 
              e virou-se para olhar uma ultima vez para a jovem. Não era 
              o que podia ser chamado de bonita, mas tinha seu charme. E os olhos 
              molhados mirando a faca pendendo frouxa de suas mãos emprestaram 
              a ela uma fragilidade tão inocente que Iorek duvidou que 
              ela fosse capaz de tirar a própria vida para escapar da ira 
              dos orcs.
 Dando as costas, 
              ele se precipitou na direção do celeiro. O caminho 
              estava livre. O combate se concentrava quase totalmente ao lado 
              do riacho, deixando o campo livre para que Iorek libertasse seu 
              tão querido amigo de aventuras. Ramsay pareceu satisfeito 
              em vê-lo, e em poucos minutos já estava a cela sobre 
              o lombo e todas as correias ajustadas. Montando seu cavalo, fez 
              com que o mesmo abrisse com as patas traseiras a porta do celeiro. 
              A força do coice atirou longe um orc desavisado que começava 
              a puxar as correntes para abri-la.
 Quando finalmente 
              pularam para a luz da lua, o pátio estava sendo invadido 
              por alguns orcs que se desgarraram do grosso das tropas para encontrar 
              tesouros passíveis de serem pilhados e não divididos. 
              Ramsay colocou-se nas patas traseiras enquanto Iorek apontava seu 
              arco contra um deles.
 A corda zuniu 
              em seu ouvido e a seta voou certeira contra a cabeça da infeliz 
              criatura. Outra vez e mais outra as setas partiram certeiras contra 
              eles, derrubando outros dois antes mesmo deles se darem conta de 
              que tinham companhia.
 Do outro lado 
              da vila Iorek percebeu que vários telhados já pegavam 
              fogo, sinal de que eles estavam ganhando terreno e já pilhavam 
              as casas mais afastadas.
 Aqui, longe da algazarra principal, ele se via cercado por mais 
              ou menos uma dezena de orcs armados com machadinhas e espadas. Por 
              sorte ainda estavam a alguma distância e antes que o primeiro 
              deles estivesse à distância de um golpe ele já 
              tinha posto metade fora de combate. Mas era melhor não cantar 
              vitória antes do tempo. Daqui a pouco eles teriam reforços.
 Sacou as espadas e atacou. Ramsay era treinado e estava acostumado 
              a lidar com estas bestas, de modo que eles lutavam em equipe enquanto 
              os orcs acertavam uns aos outros. Depois de colocar mais quatro 
              fora de ação Iorek viu os outros que chegavam dar 
              meia volta e debandar. Era uma vitória parcial, ele sabia, 
              e o momento exato de cair fora dali.
 Já puxava 
              as rédeas de Ramsay quando ouviu um grito de mulher. Por 
              um momento ele achou que seu coração pararia. Com 
              o canto do olho, ele viu a casa de Udrow em chamas, a porta escancarada 
              e um grupo de orcs arrastando a jovem para fora, que já tivera 
              sua roupa rasgada e tinha um dos seios à mostra. Não 
              viu sinal da faca em suas mãos. Ela não seguira seu 
              conselho, mas que diabos! Mulher idiota!
 Um súbito 
              frio na espinha fez Iorek perder o equilíbrio e cair da sela. 
              Imagens de sua Gleena sendo arrastada pela floresta, caindo e sendo 
              duramente castigada por isso. Os olhos dela rasos d'água 
              olhando pra as criaturas nojentas. O riso hediondo do orc imundo 
              quando enfiou a sua espada, sádica e lentamente na coxa dela. 
              A dor... Gleena pediu, implorou, mas não foi ouvida. E o 
              orc continuou às gargalhadas seu brutal espetáculo 
              de carnificina...
 Iorek ergueu-se de um salto e subiu novamente em Ramsay. Olhou em 
              direção a casa de Udrow e viu que o mesmo estava em 
              frente a ela, dando cabo de um orc e entrando por entre as toras 
              em chamas que já se desprendiam do teto. Dali a pouco saiu 
              novamente, a face suja de cinzas e tossindo muito por causa da fumaça.
 -- Adriel! - 
              gritou Udrow. - Onde você está, Adriel! - o inferno 
              se fechava lentamente em torno dele. Vários orcs se atiraram 
              contra ele, mas habilmente ele se desvencilhou das criaturas, e 
              não parava de gritar: -- Adriel! Adriel!
 Então ele viu Iorek. E Iorek apontou para a floresta ao leste.
 -- Por ali - 
              gritou ele para o homem desesperado.
 Aterrorizado 
              e aturdido, Udrow deu as costas a Iorek e viu a horda de orcs que 
              se arrastava como uma onda negra e viscosa através da vila. 
              Eram muitos, mais do que ele estaria disposto a enfrentar para tentar 
              resgatar a jovem. Virou-se para o oeste e correu para fora da aldeia 
              sem olhar para trás.
 Uma expressão 
              de incredulidade tomou conta do rosto de Iorek. Ele nem ao menos 
              tentara! Que covarde!
 Enlouquecido, 
              bateu com os pés em Ramsay e este partiu na direção 
              dos orcs com grande velocidade.
 Incontáveis 
              flechas foram lançadas por Iorek, quase todas certeiras, 
              enquanto ele abria caminho entre os orcs. A ajuda de Ramsay foi 
              crucial, e sem ela ele jamais teria chegado ao outro lado da batalha. 
              Era bem verdade que os orcs, percebendo que ele tentava apenas atravessar, 
              terminavam por se colocar fora do caminho. O humano louco estava 
              indo para o meio da floresta, exatamente por onde eles pretendiam 
              voltar. Pois bem, eles se ocupariam dele depois de ter saqueado 
              a vila inteira.
 
 * * *
 
 Ramsay corria 
              loucamente. Iorek já se certificara de que a mulher não 
              estava em nenhum lugar da vila. Parecia tática dos orcs: 
              capturar e retirar imediatamente todas as mulheres. Ele achava que 
              era uma tática para deixar os homens em desespero. Pobres 
              criaturas! Se vissem o que Udrow acabara de fazer teriam abolido 
              de vez esta tática! Mas por outro lado, eles poderiam ter 
              outros motivos para agir dessa forma... quem ia saber?
 Selune agora ia alto, sua luz inundava a floresta com tonalidades 
              de um azul fantasmagórico, mas era o suficiente para deixar 
              ver a trilha caótica deixada pelos orcs em sua fuga e a mulher 
              que tentava desesperadamente não seguir na mesma direção. 
              Parecia mesmo a Iorek que havia uma estrada bem definida que o levaria 
              diretamente e sem maiores complicações ao lugar que 
              desejava ir.
 De repente algo 
              passou zunindo por sua cabeça. Iorek puxou as rédeas 
              de Ramsay para a direita e abandonou a trilha. Já estaria 
              bastante próximo, com toda a certeza. Orcs são rápidos 
              mas não se deve exagerar!
 Voou da sela 
              de Ramsay e fez com que o cavalo seguisse seu próprio caminho. 
              Quando o chamasse ele apareceria em poucos instantes. Era mesmo 
              um cavalo digno de grandes generais!
 Então fez silencio. Até a sua respiração 
              era quase inaudível. Era hora de caçar!
 Não muito 
              longe ele ouviu um lamento de mulher, e se pôs a caminho. 
              Ia enfrentar os orcs no território que ele mais gostava: 
              a floresta! Mas em contrapartida do jeitinho que eles mais gostavam: 
              no escuro!
 Iorek pegou-se 
              imaginando mentalmente quantos seriam. Não muitos, ele esperava. 
              Sua Gleena fora capturada por mais ou menos uma dúzia daquelas 
              criaturas nojentas. Agora ele estaria disposto a enfrentar um batalhão 
              para salvar aquela mulher...
 -- Esta caçada 
              é sua, meu amor - disse baixinho. - Perdoe-me por não 
              poder ter feito a mesma coisa por você - as lágrimas 
              rolavam por seu rosto, mas não tiraram a atenção 
              do que estava fazendo. Contou quantas flechas sobravam: onze ao 
              todo. Não podia se dar ao luxo de desperdiçá-las.
 Firmou uma delas 
              na corda de seu arco e caminhou lentamente por entre as folhagens, 
              sem fazer barulho, em direção aos lamentos. Começou 
              a ouvir então as vozes guturais dos orcs que discutiam entre 
              si.
 Prometendo a 
              si mesmo que ia aprender aquela língua esdrúxula para 
              saber o que tanto eles falavam em momentos como aquele, Iorek vislumbrou 
              o brilho amarelado dos olhos pustulentos de um orc. Fez mira e disparou.
 A criatura não 
              chegou a guinchar, mas colocou seus companheiros em alerta quando 
              tombou sem vida. Olharam na direção em que se encontrava 
              Iorek, dando-lhe uma oportunidade inigualável de fazer mais 
              três disparos certeiros. Então as criaturas se espalharam, 
              crentes que estavam sendo alvo de um pequeno exército. E 
              foi então que cometeram o maior engano.
 Iorek partiu 
              velozmente em direção ao bando que se espalhava, aproveitando-se 
              da confusão para pegar pelas costas a maioria deles. Em poucos 
              segundo já não tinha flechas, e segundo suas contas, 
              deveria haver uns dez corpos de orcs espalhados pela floresta neste 
              instante. Uma ele acertara num tronco de uma arvore morta, se seus 
              ouvidos não o tivessem enganado.
 Sacou então as espadas e foi até o lugar onde estava 
              a jovem.
 -- Srta. Adriel? 
              Está tudo bem? - perguntou ele da escuridão.
 -- Quem está 
              aí? - respondeu a voz fraca e tremida da mulher em choque.
 -- Um amigo. 
              Vim para ajudar. - e assobiou para Ramsay.
 Antes que este 
              chegasse, porém, um pequeno grupo de cinco orcs saltou sobre 
              ele com toda a fúria, mas ele já esperava por isso. 
              Armado com suas duas espadas ele se atirou como um louco contra 
              as criaturas que, diante de uma fúria sanguinária 
              maior até do que as suas, se deixaram vencer tão facilmente 
              a ponto de Iorek a se sentir ofendido.
 Ramsay já 
              estava ali. Ele galgou as costas do companheiro e esticou a mão 
              para Adriel, que debilmente esticou seu braço e deixou que 
              Iorek puxasse o seu peso para a sela do cavalo. Então Iorek 
              ordenou que Ramsay saísse dali.
 E foi o que 
              Ramsay fez.
 * * *
      O 
              sol se levantava no horizonte quando Adriel abriu os olhos. Ali 
              perto um grande cavalo negro pastava despreocupado. Uma pequena 
              fogueira crepitava e lançava suas fagulhas no ar. Ao seu 
              lado estavam algumas frutinhas silvestres avermelhadas e com um 
              cheiro divino. Ela pegou um punhado e comeu avidamente.Levantou-se 
              e tentou colocar ordem nos cabelos.
 Descendo a encosta por trás de umas arvores, Iorek sorriu 
              divertido ao notar o desconcerto da mulher ao vê-lo.
 -- Bom dia! 
              Vejo que nem mesmo o perigo de ser aprisionada por orcs conseguiu 
              tirar seu apetite! - zombou ele. - Eu daria qualquer coisa por um 
              daqueles grandes espelhos de metal. Você deveria ver sua cara! 
              - e deu uma risada gostosa.
 -- Por que... 
              O que você...
 -- Complete 
              as frases, já que definitivamente eu não nasci com 
              aptidão para adivinhar pensamentos.
 Adriel começou 
              a soluçar e lágrimas escorreram por sua face.
 -- Mas porque? 
              Porque você me ajudou? Depois de tudo o que fizemos a você? 
              - ela agora chorava sem nenhum pingo de vergonha.
 -- Porque? Hehehe... 
              porque de alguma forma, eu devia isso a alguém...
 -- Mas quem? 
              A quem você devia a minha vida?
 -- Não 
              era sua vida! - Iorek sobressaltou-se, assustando a jovem. Virou 
              as costas para esconder as próprias lágrimas. - Desculpa... 
              não é com você. Eu devia isso à outra 
              pessoa... mas não pude fazer nada...
 -- Que pessoa? 
              - Adriel erguera o rosto para olhar para seu salvador, e agora se 
              aproximava lentamente dele, o braço estendido e a mão 
              aberta. Tocou suas costas.
 -- Minha esposa 
              - disse, e caiu num choro copioso e dolorido. Arriou no chão 
              e cobriu o rosto com as mãos. - Eu devia isso a ela...
 -- Desculpe... 
              não estou entendendo nada - Adriel se encontrava de pé, 
              atrás de Iorek, as mãos em seus cabelos.
 -- Foi tudo 
              culpa minha...
 -- Conte-me 
              o que houve - pediu Adriel.
 -- Eu a levei 
              para uma de minhas caçadas, e enquanto eu estava na floresta 
              ela foi aprisionada      por 
              orcs... - a voz dele parecia um fiapo da voz que lhe era costumeira. 
              - O Ramsay aí era um potro quando eu o salvei de uns orcs 
              que o estavam perseguindo. Eu matei alguns deles.
 -- E o que tem 
              isso a ver com sua es... ah, meu deus! - Adriel levou as mãos 
              ao rosto a cobriu a boca. Teriam os orcs aprisionado a esposa dele 
              num ato de vingança? - E você não sabe onde 
              encontrá-la? É isso?
 -- Eu a encontrei 
              sim... eles a mataram e a separaram em vários pedaços 
              - neste ponto do relato Iorek tossiu convulsivamente e colocou seu 
              café da manhã de frutas silvestres para fora.
 -- Por Tymora! 
              Que sorte horrível! - Adriel olhou para Iorek e chorou. Chorou 
              pela sorte de sua esposa, pela sina dele em levar dentro de si a 
              culpa da morte de sua amada, chorou de vergonha pelo modo como o 
              havia tratado junto com todos os vilões.
 -- Eu juntei 
              todos os pedaços dela - balbuciou ele, o rosto lavado em 
              lágrimas. Ele agitava as mãos em frente ao rosto como 
              se apalpasse alguma coisa. - Eu juntei lenha, muita lenha... e coloquei 
              os pedaços dela em cima...
 Adriel cobriu 
              a boca com as mãos, as lágrimas rolavam sem parar. 
              O que era aquele aspecto sujo do homem quando entrou na vila? Sofrimento! 
              Ele viera em busca de esquecimento e encontrara a traição! 
              Ela estava se sentindo o pior ser do mundo e implorava para estar 
              novamente nas mãos dos orcs, para sofrer a mais horrível 
              das mortes.
 -- Eles não 
              levaram nenhum bem dela... esse anel que eu lhe dei como prova de 
              meu amor, no dia de nosso casamento - e levantou o anel debilmente 
              em frente aos olhos. - E essa corrente com o símbolo da minha 
              deusa, Mieliki, quando completamos um ano de casados - Iorek mostrou 
              a corrente, seus olhos iam da corrente para o rosto de Adriel. - 
              A fita que prendia seu lindo cabelo naquele dia... e tirou a fita 
              de dentro da camisa. Foi então que Adriel entendeu as manchas 
              escuras que se espalhavam pela fita: era o sangue da esposa de Iorek!
 -- Ah, meu deus! 
              Eu lamento muito! Lamento muito... - era a pior coisa que poderia 
              ter acontecido na vida de Adriel. Ela usara os bens mais preciosos 
              do homem que terminara por salvá-la, bens estes que pertenceram 
              a sua mulher que fora morta por orcs, assim como ela teria morrido 
              se não fosse a intervenção dele. E estes bens 
              haviam sido roubados dele por Udrow, seu marido...
 -- Eu juntei 
              tudo e pus fogo... mas não consegui ficar para ver... - soluçou 
              ele. - Desde este dia eu venho vagando pelas terras, sem destino, 
              sem companhia... eu só queria um pouco de companhia por uma 
              noite... só isso...
 Adriel calou-se. 
              Não conseguiria dizer mais uma palavra que fosse.
 * * *      Enquanto 
              se aproximavam da vila, podiam ver o tamanho do estrago que tinha 
              sido feito pelos orcs. Adriel ia em silêncio na garupa de 
              Ramsay. Silêncio este que Iorek não se esforçou 
              em quebrar.Alguns vilões 
              andavam desolados por entre os destroços, tentando encontrar 
              algo que não tivesse sido pilhado ou quebrado.
 Quando notaram 
              a aproximação do forasteiro em seu cavalo e Adriel 
              na garupa, correram para avisar Udrow.
 Iorek ajudou-a 
              a descer e com um gracejo passou a mão dela para a mão 
              de Udrow. Ela manteve os olhos baixos o tempo todo. Udrow também 
              não foi capaz de dizer nenhuma palavra.
 Depois que Adriel 
              se afastou, Iorek desceu do cavalo e passou o braço por cima 
              dos ombros de Udrow, começando a caminhar lentamente em direção 
              a casa destruída deste.
 -- Eu não 
              contei a ela que você fugiu, mesmo sabendo que ela corria 
              perigo - disse ele com a voz seca. - Se eu fosse você, e você 
              a amasse, deixaria que ela pensasse que você estava defendendo 
              a aldeia. Tenho certeza de que ninguém além de mim 
              viu o que aconteceu exatamente, portanto, fique sossegado. Não 
              sou homem de guardar rancores, mas uma coisa eu jamais vou perdoar: 
              que você repita este ato covarde de abandonar sua esposa novamente.
 Udrow apenas 
              olhava para ele, com uma expressão de incredulidade.
 -- Ela é 
              seu bem mais precioso... eu poderia dizer até que é 
              mais preciosa que sua própria vida - e dizendo isso, acenou 
              para Adriel que observava ao longe e voltou para o lado de Ramsay.
 -- Vamos embora 
              companheiro, que a estrada é longa - e com um sorriso divertido 
              acrescentou:      -- 
              Mesmo não sabendo para que raios de lugar maluco ela vai 
              nos levar agora!
 
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