|   A seguir está a apresentação de um novo conto 
                                  de Erik Scott de Bie – autor do romance recentemente 
                                  lançado Downshadow [Queda das 
                                  Sombras]:
 Já se perguntou como é realmente 
                                  ser um paladino? Um cavaleiro sagrado, tentando 
                                  viver em uma cidade muito pouco sagrada? Uma 
                                  cidade cheia de mulheres tentadoras que se interessam 
                                  por você, e velhos inimigos cuja sede por sua 
                                  desgraça cresce a todo o momento? Downshadow [Queda 
                                  das Sombras] mostra, em um conto cheio de 
                                  batalhas, traições, situações desagradáveis, 
                                  inimigos à espreita… e as salas e passagens 
                                  sombrias do bairro mais perigoso de Águas Profundas: 
                                  Downshadow [Queda das Sombras], 
                                  abaixo das pedras e depósitos e das passagens 
                                  subterrâneas de esgoto. 
 Gedrin Ruína das SombrasDizem que os heróis das lendas 
                                  podem ver a morte rondando antes que ela apareça 
                                  para encontrá-los. E apesar de todos os heróis 
                                  morrerem, o que os faz lendários é como escolhem 
                                  enfrentar a morte – se chorando ou com um sorriso. – Catalan, o LoucoOnze Campeões Perdidos, publicado em 
                                  1403
 Flamerule, 1463, 
                                  O Ano do Herói Renascido “Mestre?”, veio a voz por detrás 
                                  dele. Gedrin Dren estava silencioso, 
                                  sentado na frente da janela coberta por tábuas 
                                  em seu quarto alugado, olhando para os escombros 
                                  da apodrecida cidade portuária de Luskan. Ele 
                                  via as fogueiras ainda acesas nas ruas, queimando 
                                  pela noite sem ninguém para apagá-las – isso, 
                                  e os gritos dos feridos e moribundos, sem qualquer 
                                  esperança de salvamento. Essa era uma cidade que os 
                                  deuses haviam abandonado, em um mundo que os 
                                  deuses haviam destruído. “Mestre?”, seu escudeiro se 
                                  esgueirou mais para dentro do quarto e parou 
                                  quando viu Gedrin sentado imóvel como uma estátua. 
                                  Gedrin virou a cabeça, e o jovem deu um salto 
                                  para trás. “Oh! Mil desculpas! Eu não…”. “Não há problema, Drovesm”. 
                                  Gedrin acenou com a mão áspera, a pele manchada 
                                  pela idade avançada. “Está ficando tarde, eu 
                                  sei – dê-me apenas mais um minuto”. “Como quiser, Mestre Ruína 
                                  das Sombras”. Gedrin moveu seus olhos pálidos 
                                  – sua cor havia desbotado para o branco da cegueira 
                                  há três décadas, tornando-o cego de um olho 
                                  – na direção do seu aprendiz, e o jovem se encolheu. Na verdade, não era bem um 
                                  jovem, pensou Gedrin. Alto, magro e de 
                                  cabelos negros, Drovesm era sessenta anos mais 
                                  novo do que Gedrin, mas isso o colocava além 
                                  do seu trigésimo inverno. Fazia com que Gedrin 
                                  se sentisse velho, o que era verdade, e Gedrin 
                                  nunca tentou se esquivar da verdade. “Sem medo”, ele disse, sorrindo. 
                                  “Tudo vai ficar bem – como o Olho sempre vê”. “É claro, mestre”. Ele congelou Drovesm com o 
                                  olhar tão facilmente quanto se o tivesse segurado 
                                  pelo braço. Era simples segurar um homem com 
                                  o olhar, apesar de ele ter demorado cinqüenta 
                                  anos para aprender esta arte. “O Olho vê todas as coisas, 
                                  Drovesm”, disse Gedrin. “Todas as coisas”. O rosto de Drovesm empalideceu 
                                  ainda mais, e ele baixou os olhos rapidamente. 
                                  Ele murmurou algo que poderia ser uma afirmativa 
                                  – ou possivelmente uma prece. “Apenas um momento, Mestre, 
                                  e depois precisamos nos apressar”. Drovesm não 
                                  o encarava. “Gostaria de chá ou algo para comer?” “Não”, disse ele. “Mas você 
                                  deveria comer – você é um jovem, e precisa da 
                                  sua força.” “É claro”. Drovesm claramente 
                                  não iria comer. Gedrin não se surpreenderia 
                                  se seu estômago estivesse amarrado em um nó 
                                  artístico. “Vou buscar seu cajado para caminhar”. Gedrin sorriu fracamente. Esta 
                                  noite seria perfeita para passar a Defensora 
                                  adiante, se Drovesm não estivesse pronto para 
                                  traí-lo nesta mesma noite. “Então será você”, Gedrin murmurou 
                                  tão suavemente que apenas um ladrão treinado 
                                  poderia ouvi-lo. “Esperava mais da sua pessoa”. Drovesm parou à porta. “Disse 
                                  alguma coisa, Mestre Ruína das Sombras?” Gedrin meneou a cabeça. “O 
                                  elefante, eu acho – traga-o aqui, antes de preparar 
                                  suas próprias armas. Eu gostaria de ficar a 
                                  sós um momento para refletir”. “Sim, Mestre”. Quando o jovem saiu, Gedrin 
                                  virou-se para a janela e suspirou. No mundo antigo, antes que 
                                  a Praga Mágica re-escrevesse as leis da magia, 
                                  paladinos sagrados podiam sentir o cheiro do 
                                  mal onde quer que estivesse. Agora estes poderes 
                                  estavam perdidos para os Reinos dos mortais, 
                                  mas Gedrin era uma relíquia daquela era e ele 
                                  se lembrava bem como ler o coração dos homens, 
                                  mesmo que não houvesse magia no processo. Drovesm 
                                  exalava escuridão – a mesma escuridão que Gedrin 
                                  havia combatido durante todos os seus noventa 
                                  e cinco invernos sem alegrias. Não – não, isso não era verdade. Tinha havido alegria 
                                  em sua longa vida, refletiu Gedrin. Noites em 
                                  que ele havia deitado entre os braços morenos 
                                  de sua esposa Sivgena, soletrando o nome dela 
                                  nas estrelas, e então, anos depois, os nomes 
                                  dos filhos deles. Em noites quentes como essa, 
                                  quando Selûne se erguia, cheia e brilhante, 
                                  ele ainda podia ouvir sua risada no vento e 
                                  ver seu lindo sorriso pelo canto dos olhos. Os olhos de Gedrin podiam ter 
                                  falhado com ele há décadas, mas seus ouvidos 
                                  permaneceram afiados como sempre. Ele ouviu 
                                  o murmúrio da voz de Drovesm embaixo, o escudeiro 
                                  cochichava com um mensageiro. Tudo estava sendo combinado, 
                                  Gedrin sabia, e isso o deixava em certa paz. Ele havia conhecido tão pouco 
                                  da paz, em quase oitenta anos carregando a espada 
                                  do Deus Tripartido através de batalhas e guerras. 
                                  Ele havia enterrado a maior parte de seus alunos 
                                  e amigos, visto a morte de cada um de seus filhos 
                                  e, quando as sacerdotisas de Shar manipularam 
                                  Sivgena para que ela ficasse contra Gedrin e 
                                  o Olho, ele mesmo havia dado fim a ela. Havia 
                                  sido o dever de Gedrin, mas ele nunca se perdoara. 
                                  Um fim seria verdadeiramente bem vindo. Mas, quando viesse, ele faria 
                                  com que fosse um fim memorável… “Mestre Ruína das Sombras, 
                                  o senhor está bem?”. Uma barba castanha rala 
                                  emoldurava o rosto nervoso de Drovesm enquanto 
                                  seus olhos escuros observavam seu venerável 
                                  mestre. Porque é isso que tantos anos de trabalho 
                                  e sangue fizeram de Gedrin: venerável. No entanto, ele não achava 
                                  que alguém fosse venerar sua memória. “Paz, filho”, Gedrin disse 
                                  tranquilamente. “Eu estou pronto”. “Graças ao Deus Tripartido”, 
                                  disse Drovesm, limpando o suor da testa. “Por 
                                  um momento, eu pensei que não fossemos conseguir 
                                  fazer nosso dever esta noite. Me preocupei achando…”. “Eu sei com o que se preocupou”. 
                                  Gedrin olhou para seu acólito serenamente, porém 
                                  seu rosto demonstrava a gravidade da situação. 
                                  “Estou apenas velho – não aleijado". “É claro, mestre”. Drovesm 
                                  fez uma mesura. “Perdoe-me se pensei de outra 
                                  forma”. “Não há nada para se perdoar”, 
                                  disse ele, suavemente. Drovesm lhe deu seu cajado 
                                  com a ponta de marfim, esculpida como a cabeça 
                                  de um elefante. Décadas de uso haviam alisado 
                                  o marfim – a suavidade o lembrava da pele de 
                                  Sivgena. Com seu cajado, Gedrin podia ficar 
                                  de pé. Assim que Drovesm certificou-se de que 
                                  ele estava equilibrado, o jovem saiu para se 
                                  equipar com suas próprias armas na preparação 
                                  para a noite que estava por vir, deixando Gedrin 
                                  sozinho na janela. Enquanto ouvia Drovesm se mover 
                                  pela antecâmara, arrumando a armadura e ajustando-a, 
                                  Gedrin olhou para o céu noturno envolto em fumaça. 
                                  Ficou imaginando se Selûne havia aceitado Sivgena 
                                  em seus braços, depois que ela havia traído 
                                  a ambos com sua irmã sombria, Shar. Gedrin ficou 
                                  imaginando se sua esposa e seus filhos o estariam 
                                  esperando além do véu – e se uma vida de heresia 
                                  significava uma eternidade no muro dos falsos 
                                  e descrentes. Pelo menos havia restado uma 
                                  filha. Mesmo que sua querida Levia não fosse 
                                  de seu sangue – e jovem o suficiente para ser 
                                  sua neta – ela o amava como a um pai, e aquele 
                                  amor o havia sustentado bem todos estes anos. 
                                  Sem ela, ele teria morrido anos atrás. Que herança deixava ele para 
                                  aquela que o amava? Ele não sabia. E quem assumiria 
                                  a Defensora após esta noite – ou cairia ela 
                                  em desgraça, como acontecera em tantas outras 
                                  partes do mundo? Estas perguntas atormentavam 
                                  Gedrin, e pela primeira vez desde Sivgena ele 
                                  sentiu as unhas gélidas da dúvida atormentando-o. 
                                  Ele havia pensado que isso não teria importância 
                                  – que a causa estaria perdida – mas agora… “Está preparado, Mestre?”, 
                                  Drovesm perguntou da porta. Ele havia vestido 
                                  sua couraça de couro negro e usava espadas gêmeas 
                                  que pareciam ser próprias para um ladino, e 
                                  não um paladino. Era o modo como treinara – 
                                  o modo como Gedrin havia treinado a todos. Gedrin fez a saudação, mostrando 
                                  as costas da mão com os dedos para cima. O Olho 
                                  de Helm, o deus dos guardiões há muito falecido, 
                                  brilhava no anel que usava em seu anular esquerdo. 
                                  Quando baixou a saudação, seu manto negro se 
                                  fechou sobre o anel, ocultando o símbolo nas 
                                  sombras. Da mesma forma como Gedrin havia vivido 
                                  toda sua vida: oculto. Talvez não houvesse sobrado 
                                  luz no mundo. Ele bateu suavemente no punho 
                                  da Defensora, sua confiável espada de mão-e-meia 
                                  – a espada do deus que ele havia visualizado 
                                  pela primeira vez em uma visão e havia carregado 
                                  por todos os dias, desde então. “Mais uma vez, velha amiga”, 
                                  ele sussurrou. “Mais uma vez – e então poderemos 
                                  descansar”. ***** O debilitado porto de Luskan 
                                  ficava na costa do Mar Sem Rastros como uma 
                                  ferida esperando para ser arrancada – mas era 
                                  um ferimento que havia se tornado tão inchado, 
                                  feio e profundo que não poderia ser lancetado 
                                  sem matar o corpo de Faerûn ao redor. Ladrões 
                                  e assassinos governavam as ruas – homens se 
                                  tornavam lobos, devorando o que quer que conseguissem 
                                  encontrar. Eles passaram por uma hospedaria 
                                  capenga, chamada Hospedaria da Velha Mari, e 
                                  Gedrin viu um grupo de homens e mulheres amontoados 
                                  na entrada do beco, olhando fixamente como seres 
                                  sem vida. Seus mantos eram feitos de pedaços 
                                  de sacos de batata ou grãos, costurados, que 
                                  agora envolviam corpos que se assemelhavam a 
                                  galhos quebradiços. Eles esperavam, contorcendo-se 
                                  e tremendo, sem falar. “O que foi, Mestre?”, perguntou 
                                  Drovesm, mas Gedrin apenas balançou a cabeça. A porta finalmente se abriu 
                                  para deixar entrar uma mulher de sessenta ou 
                                  setenta invernos, com uma face pontuda que demonstrava 
                                  a idade – a própria Mari, Gedrin imaginou. O 
                                  povo faminto a empurrava estupidamente, mas 
                                  ela os desviava com um bastão robusto. Quando 
                                  a entrada ficou livre, ela pôs a mão para dentro 
                                  da estalagem e tirou de lá um pote de ferro 
                                  preto, entregando-o ao povo reunido ali. “Peguem o que sobrou, e quero 
                                  meu pote limpo depois”, disse ela, passando 
                                  o braço pela testa. “Tenho que começar a fazer 
                                  o ensopado 'prá manhã antes da meia noite”. O povo esfomeado caiu em cima 
                                  do pote como cães sobre uma raposa abatida. 
                                  Gedrin pensou que Mari teria seu pote de volta 
                                  antes de poder contar até cinqüenta. “Os deuses sabem que sou generosa 
                                  demais”, ela resmungou. “Mas gentileza nunca 
                                  fez mal a ninguém”. Gedrin encontrou o seu olhar, 
                                  e era um olhar frio e julgador, que se abrandou, 
                                  transformando-se em compreensão. Ele desviou 
                                  os olhos, e eles continuaram seu caminho. Os prédios e praças de Luskan 
                                  nunca haviam sido grandes ou ricos, mas agora 
                                  eram pouco mais do que esconderijos e cortiços 
                                  destruídos e malcheirosos onde homens e mulheres 
                                  doentes chafurdavam por moedas como porcos na 
                                  lama. O coro de vozes cheias de dor e morte 
                                  subia através das casas em ruínas e das mansões 
                                  destroçadas para se unirem aos gritos de prazer. A maioria destes últimos saía 
                                  das janelas do Espora Briante, do outro lado 
                                  da rua – um prostíbulo, cujas janelas tapadas 
                                  com tábuas permitiam vislumbres de velhas sedas 
                                  e aromas fugazes de incenso. O símbolo do lugar 
                                  tinha apenas sete de suas letras originais, 
                                  que poderia ser lido como Espora “Brilhante”. Para Gedrin Ruína das Sombras 
                                  – que raramente encontrou alegria nos braços 
                                  de uma amante – os sons de prostitutas trabalhando 
                                  eram lembrança de uma vida vazia da carne. E 
                                  ainda assim, ele ouvia um testemunho do poder 
                                  dos homens e mulheres mortais de ver luz à sua 
                                  frente, apesar da escuridão. Eles comerciavam 
                                  seus corpos e desistiam de sua vontade pelas 
                                  moedas, e, no entanto, encontravam alegria. 
                                  Eles davam e achavam conforto uns nos outros, 
                                  mesmo rodeados por sua cidade apodrecida. Quando mais jovem – como um 
                                  fanático do Deus Tripartido – ele teria condenado 
                                  estas pessoas como sendo irredimíveis e sem 
                                  esperança. Agora, em sua idade avançada, ele 
                                  não podia deixar de sorrir. Todos estes anos 
                                  desprezando os pecadores – todos estes anos 
                                  desperdiçados. Ao seu lado, Drovesm também 
                                  escutava os sons dos jovens homens e mulheres 
                                  que trabalhavam por moedas no prostíbulo, mas 
                                  Gedrin sabia que não havia nada de nobre no 
                                  interesse do seu aprendiz. Era simplesmente 
                                  interesse na carne, e não tinha nada a ver com 
                                  luz ou escuridão. “Escudeiro”, disse Gedrin, 
                                  e Drovesm ficou imediatamente atento. “Meus 
                                  olhos me traem na luz do luar de Selûne. Guie 
                                  nosso caminho”. “É claro, Mestre Ruína das 
                                  Sombras – é claro”. Drovesm lentamente deixou 
                                  de prestar atenção no prostíbulo. Ele cuspiu 
                                  na rua enlameada. “Putas”. Gedrin olhou-o criticamente, 
                                  mas manteve seu silêncio. Então seu olhar recaiu sobre 
                                  um mendigo que estava sentado na esquina do 
                                  Espora. Seus olhos eram ruins, a rua 
                                  estava um caos e Selûne estava escondida atrás 
                                  de nuvens agourentas, e Gedrin não sabia dizer 
                                  como conseguira ver o garoto pedinte. Mas ele 
                                  o viu: uma criança de cerca de oito invernos, 
                                  curvada, envolta em vários trapos encardidos. 
                                  Talvez ele houvesse tossido ou se mexido de 
                                  alguma forma – ou talvez fossem seus olhos. 
                                  O menino olhava fixamente para Gedrin de uma 
                                  forma ardentemente intensa que ele não havia 
                                  visto em muitos anos. “Mestre?” perguntou Drovesm, 
                                  quando Gedrin pisou na estrada. “Mestre, o que…?”. Gedrin foi lentamente até o 
                                  garoto, mas em consideração à sua idade, não 
                                  por cautela. Ele sentiu novamente a sensação 
                                  familiar de escuridão vinda do garoto, mas havia 
                                  luz também. Aqui havia uma alma que não estava 
                                  perdida, mas também não estava salva. Os olhos 
                                  do garoto – tão cinzentos que eram quase brancos 
                                  – permaneciam no rosto de Gedrin com uma certeza 
                                  e confiança que o impressionaram. Eles estavam ali, parados, 
                                  o velho e o menino, olhando um para o outro. 
                                  Gedrin viu cicatrizes em volta dos lábios do 
                                  garoto – provavelmente ele tinha o hábito de 
                                  morder os lábios – e um nariz que tinha quebrado 
                                  e tinha sido colocado no lugar de forma desajeitada. 
                                  Sua pele estava muito suja, com marcas de lágrimas 
                                  descendo pelas bochechas. Ele estava segurando 
                                  sua mão esquerda, nitidamente quebrada. Todos 
                                  os dedos tinham marcas de mordidas – parecidas 
                                  com as dos lábios. Então o garoto estendeu uma 
                                  vasilha de cerâmica quebrada em sua direção. 
                                  “Dá uma moeda?”, ele perguntou. “Não como há 
                                  dias”. A voz abalou Gedrin e ele fez 
                                  uma carranca. “O que foi que disse, garoto?”. Outro pedinte poderia ter saído 
                                  correndo diante da raiva crescente de Gedrin, 
                                  mas o garoto apenas fechou a boca e olhou-o 
                                  de volta, sem medo. “Estou com fome”, disse ele. 
                                  “Dá uma moeda pra eu comer”. Gedrin deu um sorriso torto. 
                                  O garoto certamente era corajoso. Seu aprendiz o chamou, com 
                                  voz nervosa. “Mestre? Precisamos nos apressar”. “Fique tranqüilo, Drovesm”. 
                                  Gedrin cruzou os braços. “Seu nome, garoto”. O menino olhou para ele, curioso, 
                                  como se ninguém jamais houvesse perguntado isso 
                                  a ele antes. “Você deve ter um nome”, disse 
                                  Gedrin. “Kalen.” A palavra soou hesitante 
                                  nos lábios do garoto. “Mas ninguém me chama 
                                  assim – ninguém além da minha irmã”. Ele parecia 
                                  cauteloso, como se tivesse cruzado alguma linha 
                                  proibida e mostrado muito de si mesmo. Os olhos 
                                  da cor da noite eram desconfiados – mas também 
                                  cheios de personalidade. Eles pareciam, na visão 
                                  embaçada de Gedrin, quase que um único olho 
                                  vigilante. O líder visionário do Olho 
                                  da Justiça nunca havia ignorado um sinal. “Eu sou o paladino Gedrin Dren, 
                                  também chamado de Ruína das Sombras,” disse 
                                  Gedrin. “Lorde do Olho da Justiça – cavaleiro 
                                  escolhido do Deus Tripartido. Você compreende?”. O garoto franziu as sobrancelhas. 
                                  “Não”, ele disse, com sinceridade. “Seu nome, 
                                  sim, mas eu nunca ouvi falar do…”. De baixo de seu manto, Gedrin 
                                  tirou Desfensora – em sua bainha negra, perfeitamente 
                                  balanceada – e desembainhou a lâmina alguns 
                                  centímetros. O garoto prendeu a respiração diante 
                                  da visão do aço cinzento, onde as sombras tremeluziam. Não havia medo nos olhos do 
                                  garoto – apenas deslumbramento. Gedrin poderia 
                                  ter enterrado a lâmina em seu peito num piscar 
                                  de olhos e o garoto não teria parado de se maravilhar 
                                  diante da Defensora. As sombras da espada do 
                                  deus dançavam por entre seus olhos pálidos perspicazes. Talvez Gedrin tivesse feito 
                                  a escolha certa, após tantos anos de escolhas 
                                  ruins. Gedrin segurou a Defensora 
                                  com reverência, medindo pela última vez o peso 
                                  familiar, e então deixou-a cair quase que desdenhosamente, 
                                  como se estivesse se livrando de uma chateação 
                                  irritante. A espada fez um ruído surpreendentemente 
                                  suave – tudo na Defensora era surpreendente 
                                  – nas pedras quebradas da rua e depois ficou 
                                  imóvel diante dos olhos espantados do garoto. “Nunca mais mendigue”, disse 
                                  Gedrin. Quando o garoto tentou falar, 
                                  Gedrin moveu sua mão e deu-lhe uma bofetada 
                                  na orelha. Espantado, os olhos dele se encheram 
                                  de súbita raiva, e ele olhou furiosamente para 
                                  o velho. “Por que fez isso?” “Para que se lembre”, disse 
                                  Gedrin. “Aceite-a – não tente fugir dela, como 
                                  eu fiz.” Ele também tirou de sua mão 
                                  um anel – o anel de prata com a imagem do olho-que-tudo-vê 
                                  na palma de uma mão enluvada levantada. Este 
                                  ele largou na vasilha de cerâmica, onde aterrisou 
                                  com um tilintar alto.  “Quando você seguir o caminho 
                                  tripartido”, disse ele. “Vá para Portão Ocidental. 
                                  Encontre minha filha Levia e mostre-a este anel. 
                                  Ela vai saber o que ocorreu entre nós.” “Mas…”, o garoto olhava boquiaberto 
                                  para a espada que estava entre seus joelhos. 
                                  “Eu não compreendo”. Gedrin se virou, arrastando 
                                  seu manto largamente para esconder o garoto 
                                  atrás dele. Ele também enrolou o manto no seu 
                                  braço esquerdo para ocultar a falta da bainha 
                                  da Defensora. Drovesm se aproximava, seu rosto 
                                  confuso cheio de preocupação. “Mestre, o que 
                                  o senhor…?”. Drovesm inclinou-se para ver 
                                  do outro lado do manto, mas Gedrin deu um passo 
                                  à frente e agarrou-o pelo braço. “Chega de atraso”, 
                                  disse ele. “Continuemos com nossos negócios, 
                                  e logo”. Drovesm tentou olhar novamente, 
                                  mas Gedrin puxou-o mais ainda. O jovem acabou 
                                  cedendo. Andaram pela rua, em direção 
                                  às docas em ruínas e ao seu destino: Mercadorias 
                                  de Barthul, um depósito cavernoso cujo dono 
                                  era um comerciante de má reputação que se supunha 
                                  ter negócios com os mercadores mais suspeitos 
                                  de Águas Profundas, e vendia bens recém roubados 
                                  a preços exorbitantes nas ruas de Luskan. Nesta 
                                  mesma noite, havia uma reunião de mercadores 
                                  poderosos que comerciavam armas e venenos. As 
                                  ações de Barthul levaram à mortes e ao caos 
                                  nesta cidade apodrecida, e Gedrin iria acabar 
                                  com isso – de uma forma ou de outra. Eles hesitaram fora do depósito. 
                                  A riqueza de Barthul aparentemente permitia 
                                  que ele tivesse janelas de vidro mesmo em Luskan, 
                                  e o fato de elas ainda estarem intactas mostrou 
                                  a Gedrin que ele era conhecido por ladrões da 
                                  área como sendo uma força a ser evitada. Uma 
                                  luz turva enchia as janelas escurecidas, e o 
                                  som de vozes tocou seus ouvidos sensíveis, se 
                                  misturando com o cheiro de carniça em suas narinas. Gedrin olhou na direção da 
                                  baía, olhando pela última vez os Reinos que 
                                  ele amava – e odiava – tanto. Os poucos barcos 
                                  que navegavam balançavam suavemente em seus 
                                  ancoradouros. Os restos de navios menos afortunados 
                                  marcavam covas aquáticas de incontáveis marinheiros, 
                                  e novos corpos estavam se juntando ao grupo 
                                  de mortos todas as noites. Perto dali, Gedrin 
                                  viu dois homens se livrando exatamente de uma 
                                  carroça cheia de homens e mulheres – os corpos 
                                  nus pareciam ter morrido de doenças, assassinatos 
                                  e fome. “Seu anel, Mestre”, disse Drovesm, 
                                  apontando para a mão que segurava a bengala 
                                  com a cabeça de elefante. “O senhor o perdeu?”. Gedrin pensou no garoto de 
                                  olhos brancos e sorriu. “Rezo aos deuses para 
                                  que não”. ***** Quando Drovesm o levou para 
                                  o meio de um grupo de ladrões e assassinos esperando 
                                  no depósito de Mercadorias de Barthul, Gedrin 
                                  não se surpreendeu. Ele já sabia há meses que 
                                  esta traição ocorreria. “Eu juro, Mestre, que não tinha 
                                  idéia…”. Drovesm protestou, mas Gedrin não estava 
                                  escutando. Em vez disso, ele avaliou os brutamontes 
                                  que haviam vindo acabar com sua vida. “Bem vindo, Ruína das Sombras”, 
                                  disse uma voz profunda e forte – o próprio Barthul, 
                                  Gedrin adivinhou pela forma como o homem gordo 
                                  comandava a atenção de todos na sala. Ele parecia 
                                  ter sido um homem enormemente forte um dia, 
                                  apesar de estar arredondadamente gordo na sua 
                                  idade avançada. Vestia um manto roxo e aplaudia 
                                  ironicamente. “Que honra recebê-lo!”. Gedrin não respondeu – ele 
                                  não via razão para participar desta farsa. À direita de Barthul estava 
                                  uma sacerdotisa de Bane trajando uma negra armadura 
                                  de pregos, e segurava um cetro que crepitava 
                                  com raios esverdeados. Gedrin reconheceu-a, 
                                  mesmo que não pelo nome – eles haviam lutado 
                                  uma vez antes, nos becos de Portão Ocidental, 
                                  e esta era provavelmente a vingança dela por 
                                  aquela derrota. À direita do gordo mercador 
                                  estava um homem barbado vestido de negro que 
                                  segurava uma varinha em cada mão – um mago Zhent, 
                                  sem a menor dúvida. Eles eram todos iguais, 
                                  os magos da Rede Negra, apesar de bem mais fracos 
                                  do que haviam sido quase um século antes. Quatro outros mercadores – 
                                  homens e mulheres de locais tão longínquos quanto 
                                  Amn e Calimshan, a julgar por seus traços e 
                                  vestimentas – estavam nervosamente perto de 
                                  Barthul. Claramente não eram combatentes, estando 
                                  ali apenas para observar. Entre Gedrin e os 
                                  comerciantes estavam uma dúzia de homens e mulheres 
                                  armados de espadas, clavas e facas de diversas 
                                  formas e tamanhos – muitos dos quais escorria 
                                  veneno negro e esverdeado. Seus olhos estavam 
                                  famintos e seus olhares de desprezo eram venenosos. “Que honra”, continuou Barthul, 
                                  “ter tão nobre e lendário herói agraciando nossa 
                                  pequena reunião com sua presença”. Gedrin assentiu rigidamente. 
                                  Ele não se curvaria a homem nenhum. O gesto de indiferença e arrogância 
                                  não foi ignorado pelo mercador, que se tornou 
                                  levemente rosa. “Você tem atrapalhado meus negócios 
                                  em Luskan por algum tempo, Gedrin Ruína das 
                                  Sombras”, disse Barthul, deixando de lado qualquer 
                                  pretensão de cortesia. “Hoje, farei de você 
                                  um exemplo para meus associados. Vejam só, caros 
                                  colegas de negócios, o que acontece quando se 
                                  desafia Barthul, o Negro”. Os brutamontes seguraram suas 
                                  armas. Seus rostos, no entanto, mostravam nervosismo 
                                  – afinal de contas, Gedrin Ruína das Sombras 
                                  era um herói, e ninguém queria ser o primeiro 
                                  a se mover. O mago e a sacerdotisa esperavam, 
                                  com as magias brilhando nas pontas dos seus 
                                  dedos, mas Gedrin podia ver preocupação também 
                                  nos olhos deles. “Sinto muito, Mestre”, Drovesm 
                                  disse, da porta. Ele havia abandonado sua tentativa 
                                  de convencer Gedrin de sua inocência e disse 
                                  a verdade. “Eles me ofereceram muito dinheiro, 
                                  e o seu caminho é tolo. Deste modo é melhor 
                                  – melhor para todos nós.” Gedrin não se incomodou em 
                                  replicar. Não havia propósito em fazê-lo – apesar 
                                  de admirar o fato de Drovesm ter admitido suas 
                                  falhas. Na verdade, ele achava que isto estaria 
                                  acima do rapaz. Um pouco sem jeito, ele ajoelhou-se 
                                  e baixou a cabeça. “Esta é a última conspiração 
                                  que demoverei”, disse ele. “O último antro maligno 
                                  que extirparei e eliminarei antes de me entregar 
                                  à paz e ao descanso. As sombras e a escuridão 
                                  devem ser perseguidas em toda forma, através 
                                  de todas as ruas, por qualquer caminho, não 
                                  importa quão escuro, até que sejam eliminadas 
                                  do mundo”. Ele olhou em volta para todos eles. 
                                  “Vocês são todos corruptos, e devem queimar”. As palavras de sua ostentação 
                                  ecoaram pela câmara, e as pessoas ali reunidas 
                                  se enrijeceram. Os mercadores, especialmente, 
                                  ficaram pálidos ao ouvir esta condenação. Até 
                                  a sacerdotisa parecia em dúvida, e as mãos do 
                                  mago tremiam. Barthul, no entanto, não se 
                                  alterou. “Diga-nos, Ruína das Sombras”, 
                                  o corpulento mercador perguntou, apontando para 
                                  o cinto de Gedrin. “Como é que planeja acabar 
                                  com todos nós sem sua espada lendária? O velhote 
                                  estúpido vem a nós desarmado!”. Isso ressegurou um pouco os 
                                  contratados de Barthul. O terror que radiava 
                                  de Ruína das Sombras foi quebrado, e os brutamontes 
                                  relaxaram visivelmente. A sacerdotisa parecia 
                                  satisfeita e o mago sorriu, expondo uma boca 
                                  cheia de dentes afiados. “Mate-o agora!”, disse Barthul. Gedrin Ruína das Sombras deu 
                                  um pequeno sorriso e fechou os olhos. Ele murmurou 
                                  uma prece para o Deus Tripartido. Ele então explodiu em luz, 
                                  arremessando os homens para longe. ***** Quando Gedrin abriu os olhos, 
                                  o mundo estava em chamas. Barthul, os brutamontes, o 
                                  mago, a clériga negra, e o traidor Drovesm, 
                                  gritavam e arranhavam as paredes, tentando escapar 
                                  da luz abrasiva. Gedrin, ajoelhado, continuava 
                                  exalando luz, que queimava olhos, cabelos, pele. Aqueles que receberam a maior 
                                  parte dos raios morreram rapidamente. Barthul 
                                  explodiu como uma uva podre e evaporou, deixando 
                                  para trás apenas uma sombra na forma de um homem 
                                  aterrorizado. O mago se debateu desesperadamente 
                                  e se transformou em cinzas escuras como uma 
                                  folha de papel queimada por chama voraz. A soluçante 
                                  Banita se contorceu contra a parede como se 
                                  estivesse crucificada, pregada na argamassa 
                                  pela luz carbonizante que saía do velho paladino, 
                                  e então veio ao chão em um monte de carne e 
                                  ossos queimados. Os soldados que tiveram a má 
                                  sorte de estar entre Gedrin e seus mestres gritaram 
                                  quando suas armas explodiram em chamas brilhantes, 
                                  e caíram no chão, sufocados, incapazes de respirar 
                                  o ar ardente. “Mestre!”, Drovesm gritou. 
                                  “Mestre… por favor! Eu estava errado!”. “Que a luz da justiça o purifique, 
                                  como purificou a mim”, Gedrin rezou através 
                                  do brilho ofuscante. “Os malignos não podem 
                                  ficar de pé, mas a luz mostra compaixão aos 
                                  arrependidos”. Abandonando palavras, Drovesm 
                                  bateu com sua cabeça contra a parede, tentando 
                                  desesperadamente fazer com que a dor parasse. 
                                  Então, ouviu-se um ruído surdo e ele veio ao 
                                  chão, o corpo em espasmos. Homens e mulheres caíram de 
                                  joelhos, pedindo perdão, mas a luz consumia 
                                  tudo. Aqueles mais perto do paladino foram queimados 
                                  e viraram cinzas, e aqueles um pouco mais distantes 
                                  estavam com o sangue borbulhante e as lágrimas 
                                  evaporando com o calor. O depósito se encheu de morte 
                                  naquela noite – morte que veio rápida nas asas 
                                  da radiância cauterizante, frente a qual ninguém 
                                  podia ficar. “Mas… mas não somos maus!”, 
                                  gritou um mercador de Amn que tentava em vão 
                                  se esconder da luz. “Por favor! Eu… eu sou mercador 
                                  de moedas! Eu não sou um homem bom, mas não 
                                  sou mau!” Ao lado dele, uma mulher de 
                                  Calimshan de rosto afilado guinchava escondendo 
                                  a face cheia de queimaduras. A luz diminiu um pouco, como 
                                  se as palavras a tivessem amortecido. Então 
                                  Gedrin suspirou. “Mas você é corrupto”, disse 
                                  ele, tristemente. “E isso é a mesma coisa”. A luz se renovou, mais brilhante 
                                  do que antes. O mercador caiu com um gemido, 
                                  e o cabelo da sua companheira desapareceu nas 
                                  chamas enquanto ela caía sem sentidos, suas 
                                  mãos destruídas revelando um pedaço de carvão 
                                  onde seu rosto estivera. Os gritos foram diminuindo 
                                  – todos os seus inimigos haviam sido queimados 
                                  até o ponto que mal se distinguia que ali houvera 
                                  vida. ***** Após uma dúzia de respirações 
                                  agonizantes e dolorosas, a luz finalmente diminuiu 
                                  e desapareceu em volta do velho paladino. Ele 
                                  se ajoelhou no centro de um vasto círculo de 
                                  cinzas mortais e olhou em volta com uma mistura 
                                  de tristeza e resignação. Até que descansasse 
                                  um pouco, a luz se esconderia além do seu alcance 
                                  – ele havia gasto o máximo que sua carne podia 
                                  agüentar. Gedrin Ruína das Sombras sentiu 
                                  seu coração bater rapidamente. Ele não havia 
                                  canalizado tal poder em décadas, desde quando 
                                  havia eliminado, a serviço de seu deus, um enorme 
                                  dragão das sombras. Talvez a morte estivesse 
                                  finalmente chegando, e ele temia e ansiava por 
                                  aquela escuridão com a mesma intensidade. A escuridão veio, mas não da 
                                  maneira como ele havia imaginado. Uma forma saiu das sombras. 
                                  Se Gedrin tivesse olhado para trás quando a 
                                  luz estava brilhando, ele poderia ter visto 
                                  o homem das sombras encolhido no canto, o mais 
                                  longe possível da luz cegante, mas apenas se 
                                  ele olhasse da forma certa. A criatura andava 
                                  pelas sombras como se elas fossem um mundo à 
                                  parte, como de fato o eram. Gedrin reconheceu imediatamente 
                                  seu antigo inimigo, apesar de muitos anos terem 
                                  se passado desde a última vez que haviam se 
                                  visto. “Kirenkirsalai”, disse ele. Era um nome que ele não havia 
                                  pronunciado em trinta anos, desde o duelo em 
                                  que havia destruído a criatura em que Sivgena 
                                  havia se tornado – uma criatura que ele, 
                                  o homem das sombras, havia criado. Isso importava 
                                  pouco, agora. Gedrin estava acabado. “Você se lembra”, o homem das 
                                  sombras disse. “Você se lembra do nome que te 
                                  dei para me chamar”. Gedrin considerou seu inimigo. 
                                  Ele poderia um dia ter sido um mortal nascido 
                                  de um humano e de uma elfa, mas havia pouco 
                                  de humano nele agora – não havia há mais de 
                                  um século. Seus olhos, para começar, eram completa 
                                  e inteiramente negros – sem branco nem íris: 
                                  apenas a escuridão indescritível. “Sim”, disse ele. “E também 
                                  o seu nome verdadeiro, Ne…”. “Nunca este nome”. Uma mão 
                                  agarrou a garganta do velho, sufocando suas 
                                  palavras. “Eu nunca mais usarei este nome. Eu 
                                  estou além dele – melhor do que ele. 
                                  Aperfeiçoado”. Gedrin piscou, cansado. A respiração 
                                  era quase impossível, e também a fala. Ele estava 
                                  morrendo, ele sabia – uma última amostra de 
                                  radiância antes do fim. Ele achou que podia 
                                  ver as faces do Deus Tripartido. “Onde está ela, Ruína das Sombras?.” 
                                  Dedos envoltos na escuridão acariciaram sua 
                                  cabeça. “Onde está ela, a criança que você prometeu 
                                  me entregar, todos estes anos atrás? Você deve 
                                  estar com ela.” Gedrin olhou para o rosto de 
                                  seu atormentador. Ele não mentiria, nem iria 
                                  implorar. “Não”. “Quase oitenta anos, e ainda 
                                  assim você não a tem?”. A criatura deu um 
                                  passo para trás, seu rosto dividido por um sorriso 
                                  louco e cruel. “Vocês homens são todos iguais. 
                                  Paladino ou assassino, os votos que você faz 
                                  em nome da honra são apenas vento nos 
                                  meus ouvidos”. “Você está errado,” disse Gedrin, 
                                  mas não conseguia dizer nada além disso. Seu 
                                  coração batia descompassadamente, e era como 
                                  se houvesse um cavalo sentado na parte esquerda 
                                  do seu corpo. Seu tempo havia acabado. Uma sombra passou entre ele 
                                  e a luz acima. Seu mundo escureceu. “Não pense que vai escapar 
                                  de mim – eu não vou deixar a idade mortal roubar 
                                  minha vingança”. Então Kirenkirsalai hesitou. “Sua espada, Ruína das Sombras”. 
                                  A voz sem emoção soava agitada. “Seu velho tolo 
                                  – o que foi que fez com sua espada?”. Gedrin olhou para os dois pontos 
                                  de luz em uma das janelas embaçadas de Barthul: 
                                  o garoto dos olhos brancos. O garoto estava 
                                  olhando para ele – implorando com ele. Não implore, Gedrin 
                                  pensou na direção do garoto. Não tente fugir, 
                                  como eu fiz. “Você é um inútil”, disse o 
                                  homem das sombras, saindo de perto de Gedrin 
                                  com desprezo. “Um velho patético e arruinado 
                                  sem nenhuma utilidade. Você está acabado, velho 
                                  – acabado e morto.” “Talvez”, Gedrin sussurrou. 
                                  “Mas ele não”. “O quê?”, o homem das sombras 
                                  perguntou. “O velhote delira, quando sua hora 
                                  chega?”. “Meu aprendiz”, disse Gedrin. 
                                  “Meu aprendiz vai continuar o trabalho”. O homem das sombras riu. “Seu 
                                  aprendiz foi morto por suas mãos, Ruína das 
                                  Sombras”. Ele apontou para a pilha de cinzas 
                                  que havia sido Drovesm. “Ou você esqueceu? Todos 
                                  se viraram contra você e não lhe restou nada. 
                                  Você morre como um homem quebrado – uma causa 
                                  perdida.” As palavras recaíram nos ouvidos 
                                  de Gedrin, mas ele mal as ouviu. Ele estava 
                                  olhando para o garoto dos olhos brancos. Veremos, pensou ele. Gedrin sorriu para o garoto, 
                                  depois olhou de volta para a criatura das sombras 
                                  de pé diante dele. Havia uma espada em sua mão 
                                  – uma lâmina longa composta de pura meia-noite. 
                                  Ele ficou em uma posição delicada e graciosa 
                                  de ataque, a lâmina sobre o coração de Gedrin. “Você pode morrer agora, Ruína 
                                  das Sombras”, disse ele com desprezo, seus olhos 
                                  negros vívidos cheios de malícia. Seu coração estava explodindo 
                                  – ele sentia com se seu peito estivesse desabando 
                                  dentro de si mesmo. A respiração não vinha, 
                                  muito menos a fala. Ruína das Sombras fechou 
                                  os olhos, sabendo que nada poderia fazer – força, 
                                  espada ou radiância alguma havia sobrado. Apenas 
                                  a aceitação. A lâmina entrou no seu peito. Ele pensou em Sivgena e em 
                                  seus filhos. Veio a verdadeira escuridão.
 
  
 Sobre o Autor
 Erik Scott de Bie tem 20 e 
                                  poucos anos e teve uma variedade de empregos, 
                                  a maior parte deles de natureza jornalística 
                                  e/ou administrativa, apesar de alguns serem 
                                  mais exóticos – domesticar crianças birrentas, 
                                  apagar incêndios em florestas e duelar amadoristicamente. Erik viveu na estrada na Espanha 
                                  por um mês, no metrô de Londres por seis meses, 
                                  no vale da Califórnia por pelo menos um ano 
                                  e meio, em uma parte artificialmente verde do 
                                  Oregon por quatro meses e ele mora, atualmente, 
                                  no Norte (Seattle, na vida real) com um casal 
                                  de gatos chamados Apollo e Athena e com um anjo 
                                  cativo chamado Shelley. Nas horas vagas, ele anda furtivamente 
                                  pelas ruas de Londres vestido de preto, ataca 
                                  os antigos castelos da Escócia e enfrenta franceses 
                                  pirofágicos em noites quentes às margens do 
                                  Sena. Ele já olhou a morte nos belos 
                                  olhos, venceu seu maior inimigo em nome do amor 
                                  verdadeiro e ganhou algumas cicatrizes de sabre 
                                  bem espetaculares (vocês deviam ter visto o 
                                  outro cara). O resto do tempo Erik passa 
                                  escrevendo, jogando RPGs, lendo vorazmente, 
                                  escrevendo mais ainda, tentando reunir o seu 
                                  grupo de D&D, atualmente separado, para 
                                  sessões de jogo de vez em quando, pesquisando 
                                  segredos arcaicos, invocando demônios e obrigando-os 
                                  a obedecer suas ordens para utilizá-los contra 
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