Capítulo 1 – O Festival da Muralha

Por Ricardo Costa
Imagem de Topo, “O Vale das Sombras”, autor desconhecido

A noite do terceiro dia do primeiro mês de 1.373 CV era fria no Vale das Sombras, mas não era um dia comum de inverno. Durante meses, o bom povo camponês do lugar trabalhou pesado, junto com trabalhadores vindos dos outros vales, e também foi aliviado de muitas moedas douradas para erguer uma muralha em volta do núcleo urbano da pequena cidade. Os muros, feitos de blocos cinzentos de granito, não eram duplos ou especialmente elevados, como os de grandes metrópoles como Inverno Remoto ou Athkatla, mas forneciam proteção e significavam a concretização de um sonho antigo, realizado pela condução diligente de Lorde Mourngrym Amcathra. O velho aventureiro aposentado, usando sua influência e habilidade, arrecadou dinheiro de seu povo, de comerciantes, de heróis prósperos e dos Reinos vizinhos, como Cormyr, que tinha interesse em usar a muralha como um ponto de contenção para qualquer incursão dos belicosos nortistas de Forte Zenthil. Estes inimigos eram comandados por um ditador versado nas artes sombrias e patriarca da religião de Bane, Deus da Tirania, chamado Fzoul Chembryl. Fzoul e seus exércitos já haviam ameaçado os Reinos anteriormente, mas suas ambições sempre foram freadas pelas forças de poderosos heróis e de exércitos aliados. A muralha recém-construída se somaria a estas defesas.

Apesar das torres de guarda, que ficavam nas laterais de cada portão e guarnecendo as mudanças de direção dos muros, não estarem prontas, hoje era a noite da sua inauguração, o declarado “Festival da Muralha”. A cidade estava em festa. Vinho, hidromel, pães, truta assada, queijos, bolos de mel, tudo havia em abundância nesta noite. No pátio principal, no centro da cidade, armou-se uma grande arquibancada de madeira, em forma de ferradura, onde se encontravam o povo e os convidados, vindos de muitas partes. No centro, uma fogueira grande e um tablado, onde se apresentava uma dupla de menestréis, um violeiro com bigodes negros e um chapéu cinzento de abas largas, chamado Ritch, e uma mulher loira e bela, de voz extremamente afinada, de nome Candícia.

Alguns aventureiros famosos estavam presentes, como Storm Mão Argêntea, conhecida como A Barda do Vale das Sombras, e Dove Garra de Falcão e seu marido Florin, pertencentes ao famoso grupo dos Cavaleiros de Myth Drannor. As duas moças, de cabelos prateados, eram irmãs e alguns diziam que eram filhas de Mystra, a Deusa da Magia, e que contavam centenas de anos de idade. Esperado na festa, o maior de todo os heróis, o lendário mago Elminster, alegou alguma missão urgente e desapareceu durante a tarde, alimentando a constante aura de mistério sobre si próprio. Havia gente de longe que veio ao Festival só para ver se ele existia mesmo ou não. Mas havia também os aventureiros da Comitiva da Fé: o mago elfo de cabelos azuis celestes Kariel, que se sentava ao lado de seu filho meio-humano, o pequeno Zender, e seu velho amigo, o também mago, porém aposentado, Kelta; o elfo clérigo de Mystra chamado Mikhail; o inconsequente espadachim Arthos, o mateiro nortista Limiekki, o paladino Magnus e o comilão ladino da raça dos pequeninos, Bingo. Sentados, um lance de arquibancada acima destes, também estavam o arcano de roupas negras conhecido por Garth e seu novo amigo, o anão guerreiro Baruk, completando assim aquele grupo de heróis.

Todos apreciavam a música, que foi seguida da apresentação de um homem com roupas bufantes e coloridas, autodenominado Shaba, o Magnífico, que realizava belos truques mágicos de luzes e formas no céu.

Garth franziu a testa e balançou a cabeça negativamente. Baruk, que enfiava uma coxinha de galinha barba negra adentro interpelou o companheiro.

– O que há, Garth? Não está gostando do espetáculo!?

– Ridículo… um amador esse aí. Posso produzir efeitos luminosos muito mais elaborados. É uma magia simples, de círculo zero. – disse o homem de cerca de trinta e cinco primaveras, em tom de menosprezo.

– E porque não vai lá fazer, mago? O povo ia gostar! Vai lá! Faz melhor! – Baruk falou sorrido, com uma caneca de cerâmica cheia vinho na outra mão.

– Não sou um saltimbanco, Baruk! Irá aprender isto. Não vou gastar minhas energias místicas para divertir um bando de camponeses.

– Você é muito mal-humorado, homem! Conheci alguns anões assim no Norte.

– Você também ficaria mal-humorado se o Lorde Mourngrym tivesse levado vinte moedas de ouro de sua bolsa. Tive que contribuir para erguer essa tal muralha horrível.

– Mal-humorado e avarento!

Lorde Mourngrym Amcathra era um homem de cerca de cinquenta anos, longos bigodes negros e certa barriga arredondada. Era o líder inquestionável daquele Vale e usava sob suas roupas simples o símbolo de seu poder, o Pingente de Ashaba. Mourngrym estava em um camarote especial, cercado de seus familiares: sua esposa Shaerl e seus filhos; o menino Scotti, de oito anos, e o adotivo Kantras, rapaz feito e casado com a druidisa Adsartha. Após o último brilho mágico proporcionado por Shaba, o Magnífico, um risco de fogo em forma de um dragão, apagar-se no céu, o Lorde pediu a palavra, batendo sua faca na taça de metal que segurava. Todos silenciaram e o sorridente senhor começou um discurso.

– Amigos do Vale das Sombras. Agradeço por atenderem o meu chamado. O Vale é querido de muitos aventureiros que por aqui passaram e que sabem que o bom povo que aqui mora é amigo e trabalhador e que deve ser protegido dos malfeitores e monstros errantes. A muralha que estamos construindo é com este intuito. Muitos dizem que é algo que somente as grandes cidades deveriam ter. Realmente está sendo bastante caro concretizá-la, mas a generosidade de vocês e o trabalho do povo do Vale das Sombras e de seus aliados estão fazendo com que este sonho se realize. Se tudo ocorrer como esperamos, a Muralha, seus portões e torres estarão prontos em quatro meses. Agradeço a todos, especialmente ao sábio Elminster, que não pode estar presente, à querida Storm, aos Cavaleiros de Myth Drannor, a Comitiva da Fé, a Heinz Arraz, mestre das caravanas, a Jaehle Crina Prateada, proprietária do Velho Crânio, a Delegação Imaskari, a Weregund, o mercador, e aos Espadas Esmeraldas. Espero não ter esquecido ninguém! Ergo, então, um brinde do vermelho vinho ao Vale das Sombras e a Muralha. Ao Vale e a Muralha!

As últimas palavras do Lorde foram repetidas em coro com entusiasmo pelos presentes e logo a música voltou, com flautistas.  Nas arquibancadas, um soldado da guarda da cidade começou a subir desajeitadamente os degraus, pedindo passagem entre as pessoas. Chegou-se às proximidades dos assentos ocupados pelos aventureiros da Comitiva da Fé, até estar perto à Arthos. Virou-se para o homem ruivo e disse em um tom de voz alto o suficiente para todos ouvirem.

– Senhores! Perdoem-me interrompê-los, mas existe um homem do Vale, um camponês chamado Amos, que diz conhecê-lo! Ele insiste que a Comitiva o encontre. Parecia aflito com algo. É desejo dos senhores encontrá-lo?

– É aquele homem que nos deu abrigo quando retornamos de nossa viagem aos subterrâneos. Uma fazenda nos arredores do Vale, antes do rio – lembrou Limiekki.

– Vamos ver o que ele quer, disse Magnus, paladino do Deus Helm, protetor dos Guardiões, que mesmo naquele dia de paz, vestia sua armadura brilhante e portava na bainha dourada a poderosa espada Hadryllis, como se fosse a uma batalha.

Kariel pediu licença a Kelta e disse ao filho, um garoto cerca de 8 anos, que se comportasse até a sua volta. Ele e todos os outros heróis levantaram-se e desceram a arquibancada, seguindo o guarda. Após deixarem para trás o palco das festividades, viram o fazendeiro barbudo, que estava ladeado por dois outros soldados.

– Comitiva da Fé! Heróis! Sabiam que me atenderiam – disse, em um timbre que ao mesmo tempo significava urgência e alívio. – Lembram-se de mim? Amos Campo Branco… vocês dormiram em minha fazenda há dois meses atrás. Sabia que estavam aqui e preciso de ajuda.

– Calma, homem! – pediu Mikhail, o elfo de cabelos dourados e sacerdote de Mystra, a Deusa da Magia – O que há?

– Meu filho Valdor… ele perdeu-se em uma caverna. Dizem que lá existem perigos… monstros, sabem. Ia chamar os guardas, mas se vierem comigo, certamente terei mais chances de voltar com meu Valdor.

– Vamos! Acharemos o seu filho. – prometeu-lhe Kariel – Leve-nos a esta caverna!

A Comitiva da Fé seguiu o camponês pela rua principal do Vale das Sombras, até passarem pelo recém-construído Portão de Ashaba, entrada oeste da nova muralha. Naquele dia festivo, não havia sentinelas e a entrada estava aberta. Assim que passaram pelo muro, no entanto, algo inesperado surpreendeu os caminhantes: uma luz surgiu bem à margem do caminho para a ponte que cruzava o rio. Em poucos segundos, a luz tornou-se um oval de energias púrpuras que rodopiavam em espiral. Dele saiu uma mulher de pele branca e cabelos negros. Trajava um vestido azul e carregava atravessada ao corpo, uma bolsa de couro. Assim que seus olhos analisaram os integrantes daquela comitiva, seu rosto assumiu uma expressão de espanto e um leve sorriso seguiu-se. Já os heróis, surpresos que estavam, sacaram suas armas e Magnus empurrou Amos Campo Branco para trás de si, guardião que era. Antes que falassem algo, a mulher começou.

– É a Comitiva da Fé? Que sorte encontrá-los tão rápido. Foi como o Espírito previu.  Precisamos da ajuda de vocês.

– Acho melhor entrar na fila, moça. Já estamos indo ajudar este homem! – disse Limiekki.

– Quem é você e porque nos procura? – perguntou Kariel, em tom mais sério que seu amigo.

– Meu nome é Marlana! Vim de uma época futura através da magia conhecida como Canal do Tempo. Vivemos em um tempo sombrio e vocês podem ser nossa esperança de vencermos um grande mal que se abateu sobre os Reinos. Venham comigo, por favor!

– Espere aí! Não vamos entrar aí com você sem saber mais detalhes. Quem sabe se você não é uma enviada de algum inimigo? Nós temos uma multidão de pessoas que gostariam de nos ver mortos! – Arthos disse, erguendo a palma da mão.

– É claro… entendo. Trouxe uma carta do líder de nosso movimento. É endereçada a você, Kariel.

O mago elfo de cabelos azuis-claro, que vestia um robe branco deu dois passos a frente e tomou uma carta, lacrada com um selo de cera.

– É o sinete da minha família. Parece autêntico.

– É autêntico! – completou a mulher – Foi seu filho que escreveu e selou esta carta.

Kariel quebrou o lacre, abriu a correspondência e leu em voz alta:

Saudações, Comitiva da Fé

A portadora que lhes traz esta mensagem é Marlana, alguém de minha confiança absoluta. Sei que é difícil confiar em estranhos, mas não posso estar presente, por imposição da magia que a transportou. Neste dia, do Festival da Muralha, sabia onde estariam e por isso a enviei para encontrá-los.

Viemos de um futuro sombrio, fruto das conseqüências de fatos que se desenrolarão em breve, mas que não sabemos como deter. O que nos restou foi utilizar os últimos pergaminhos da magia Canal do Tempo, remanescentes do Império de Netheril, para pedir ajuda àqueles em confio plenamente.

O portal é fugaz e fechará rapidamente, em poucos minutos. Tenho esperanças de que venham e nos ajudem afastar trevas maiores do que as pessoas de minha época podem combater.

Sou conhecido entre os meus como Espírito, mas hoje me conhecem como Zender.

Meus respeitos e que Tymora[1] os guarde!

– Zender Elkandor.

 – Esta carta foi escrita pelo meu filho! – exclamou o elfo Escolhido de Mystra – Pode ser um risco, uma armadilha, mas acredito que seja verdade! Eu irei. – disse Kariel, olhando para os amigos.

– Então iremos todos! – disse, resoluto, Magnus, o paladino – Alguém possui alguma objeção?

Com um silêncio e um balançar afirmativo na cabeça, a Comitiva assentiu à nova missão, a exceção de Garth, que interferiu.

– Boa sorte a vocês ! Ficarei aqui mesmo! Da última vez que fiz uma viagem no tempo, fui atirado de uma torre e efetivamente morri. Se não fosse pela, agora divina, Meia Noite[2], me trazer dos mortos não estaria aqui. Ademais, sempre existe o risco de ficar preso em outra época. Mandem lembranças aos meus descendentes, se é que terei algum.

– E enquanto a Valdor!? – Foi a vez do desesperado camponês Amos se manifestar – Não irão mais ajudar a encontrá-lo?

– Sim! Não podemos ir! Prometemos a ele salvar o filho perdido, moça! – falou Bingo, o pequenino, na direção da mulher.

– Não se preocupem. Voltarão a este mesmo lugar e tempo logo após a partida de vocês de minha época! – explicou a mulher de cabelos negros e voz calma – Para aqueles que ficarem só se passarão instantes.

A luz púrpura do portal mágico começou a tremular e a maga alterou sua expressão e com urgência na voz, alertou

– Prometo lhe dar mais detalhes, mas se quiserem vir, devemos partir agora! O Canal do Tempo se fechará!

Marlana fez um gesto com as mãos e entrou no oval de energias místicas. Os outros a seguiram e, assim que passaram, a passagem luminosa reduziu de tamanho até desaparecer completamente, deixando Garth e Amos olhando, por um instante, um o rosto do outro, perplexos, na noite estrelada do Vale das Sombras.

Contínua no Capítulo 2 – Os Últimos da Floresta.


[1] Tymora – Deusa da sorte, do risco e dos aventureiros.

[2] Meia Noite – Maga e heroína mortal que ascendeu ao posto de divindade, ao substituir a antiga Deusa da Magia, Mystra. Adotou o nome da antecessora.

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Sem Resultados

  1. Ronaldo disse:

    Pessoal!! Adorei essa volta dos contos da Comitiva da Fé. Me inspirou muito a narrar minhas aventuras e o site deles ainda é uma opção de procura minha.
    Agora tenho uma dúvida. No site, as cronicas estavam ainda no Underdark na luta pra fechar os portais. Eles estavam até com uma naval voadora. Essa parte ainda será publicada?

    • Daniel Bartolomei disse:

      Salve, Ronaldo! Conforme me disse o Ricardo Costa, a continuação dessas histórias não foi transcrita ainda. Para publicar no Aventureiros, ele decidiu escrever o novo arco de histórias, “A Guerra de Fzoul”, retomando o arco anterior quando ele tiver um pouco mais de tempo para escrever. Quando for a ocasião, vamos procurar publicar aqui também. Abraços!

  2. Kryss disse:

    Fantástico! Além da tremenda saudade que eu tinha de rever as histórias da Comitiva, é sempre incrível esse clima diferenciado que os textos do UDG sempre traziam. É quase como se eu estivesse respirando o cheiro e sentido o vento de Faerun. Sério! Não sei explicar, mas o texto é tão simples só que ao mesmo tempo fluido,dinâmico e rico em detalhes e clima! Essa sensação eu só consigo sentir nesse cenário e nesses textos da comitiva, é incrível!

    Estava com tremenda saudade das histórias da Comitiva da Fé, estou feliz demais que o UDG tenha voltado a escrevê-las e que vocês estejam disponibilizando essa aventura aqui! E o plot de viagem no tempo me pegou de surpresa e foi uma baita ideia, na minha opinião. Realmente surpreso e ansioso! Estou com alguma ideia do que possa ser esse “terrível mal que assolará os Reinos” que a Marlana citou, será que estarei certo? Só aguardando pra saber. rsrs

    Quando sai o próximo?! Que seja rápido, por favor!

    Abraços, cheers!

    • Daniel Bartolomei disse:

      Salve Kryss! Não tem como não amar mesmo as aventuras da Comitiva! Como fã e antigo colaborador do UDG também sentia falta das aventuras do grupo, e agora que estamos as disponibilizando novamente, estou muito feliz! Quanto à periodicidade da publicação das histórias, não há uma programação fixa, elas serão patadas conforme forem escritas. Nesse caso é melhor seguir o blog pra ser alertado das publicações 😉

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